Perspicácia!
O caminho entre o cemitério e casa foi feito lentamente, como se houvesse uma força a empurrá-los para longe. Lucinda, agora viúva, pendurara-se no braço de uma das filhas. Lídia agarrara-se carinhosamente ao braço de Arlindo. Pela primeira vez sentia o calor do homem que nascera na aldeia e partira cedo para a cidade e com quem desejava partilhar o futuro.
A mãe de negro vestida fixou o olhar no empedrado e desabafou baixinho:
- Que vai ser de mim sem o meu Abílio... o que vai ser de mim...
Mas no mesmo instante parou, virou-se para Arlindo e perguntou:
- Quantos dias ficas cá?
A pergunta fazia naturalmente sentido para a mãe mas não para o filho. A resposta teria de ser dada com pinças de forma a não molestar ainda mais a antecessora. Como era seu hábito ficou a pensar na resposta para depois avançar:
- Mãe... Lamento mas tenho de ir embora ainda hoje. Temos ambos de ir trabalhar - e olhando para a namorada, esboçou um leve sorriso. Lídia devolveu o gesto.
- Mas já? Não ficas dia nenhum?
- Eu venho cá brevemente... Agora que está sem o pai... virei cá mais vezes.
Uma torrente de choro sobreveio à mãe. Finalmente:
- O que fazes por lá, filho?
Arlindo nunca falara aos pais do curso superior recentemente acabado. Gostaria de ter dito ao pai em primeiro, mas o destino ou fosse lá o que fosse havia-o arrebatado primeiro. Respirou fundo e respondeu:
- Sou jurista!
- Isso é o quê?
Não era seu hábito dizê-lo mas compreendeu que só assim a mãe o entenderia.
- Sou advogado...
Lucinda parou subitamente e olhando para o filho de forma firme, perguntou:
- Tu és doutor?
E crescendo com a voz repetiu:
- Tu és doutor?
Arlindo tremeu um pouco mas acabou por responder:
- Mãe... doutor não é profissão...
Lucinda deixou por breves momentos de o ouvir e declarou:
- O teu pai tinha razão... - e após um mui breve silêncio, continuou - sempre disse que haverias de ser alguém. O teu pai tinha razão...
O filho olhou a namorada e encolheu os ombros. Nada mais podia dizer para esclarecer a mãe. O melhor seria partir e o mais depressa possível. Já perto do seu carro começou a despedir-se das irmãs e da mãe:
- Mãe, tenho de ir... Daqui a umas semanas volto cá, de certeza! Ou quer ir comigo?
- Não, não... eu fico cá! Tenho aqui muita companhia... Só te peço que não estejas tanto tempo sem cá vir...
- Prometo mãe. Regresso muito em breve.
Lídia despediu-se também e meteu-se no carro. Este arrancou devagar e subiu a serra íngreme até à povoação seguinte onde pararam para almoçar no restaurante que Arlindo experimentara no dia anterior. Na praça o mesmo idoso agarrado à velha bengala sentado no velho lugar. Parada a viatura, Arlindo passou pelo homem e cumprimentou:
- Boa tarde ti' Albino...
- B'tarde... - este levantou os olhos para perceber quem o cumprimentava assim. Reconheceu o cliente da filha do dia anterior e lançou uma singela farpa:
- Hum! Reparo que gostou do restaurante?
- Sim, sim gostei...
- Percebe-se...
- Como?
- Até já arranjou companhia... feminina! - e apontou Lídia com a bengala.
Aquele idoso era uma caixa de surpresas. Arlindo esboçou um sorriso e respondeu à brincadeira:
- Estava presa ali na aldeia ao lado e fui lá resgatá-la...
O velho ergueu a bengala na direcção do firmamento, deixou-a cair a ponta no chão e por fim concluiu:
- Cheira-me que foi mais o contrário...
- Não percebi...
- Não? Pergunte ao seu olhar que ele responde...