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A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

28 Dez, 2014

400 palavras - VIII

Ajeitou a gravata quando pressentiu que a porta se preparava para ser aberta. Um homem corpulento, de tez pálida penetrou na sala estendendo a mão para a visita. Não obstante o aspecto volumoso parecia afável.

- Engenheiro Lídio Messias? Como está? – Cumprimentou.

Lídio retribuiu:

- Muito bem! Mas trate-me pelo meu nome, simplesmente.

O anfitrião sorriu com a franqueza e acrescentou:

- Claro. Faça o favor de se sentar.

E continuou:

- Veio responder ao anúncio?

- Exactamente!

- Como compreende há uma série de questões que gostaria de ver esclarecidas…

- Com todo o gosto!

O entrevistador recostou-se na cadeira e desbobinou um ror de perguntas. Ao fim de quase uma hora declarou:

- Creio que preenche todos os nossos requisitos. Sabe do negócio, tem ideias precisas do que necessitamos… Isso é muito bom! Já agora posso só colocar uma questão do foro mais pessoal?

- Obviamente…

- Quais são neste momento os seus sonhos, os seus desejos?

Resposta contínua:

- Não tenho sonhos…

- Como não?

- É como lhe disse… Não são os sonhos que me fazem mover.

- Então como chegou aqui? Como se licenciou?

- Desde cedo tive consciência que os sonhos só me atrapalhavam. Por isso abdiquei deles e apenas dei valor à lógica da vida.

Atrapalhado por aquela postura e entrevistador sentiu-se atemorizado. No entanto foi acrescentando:

- Nunca desejou um brinquedo, ter uma namorada, comprar um carro?

- Nunca! Sinto que só devo ter aquilo que posso. Os sonhos só acarretam desilusão, ansiedade e obviamente depressão. Sou pragmático e realista. O curso que frequentei não correspondeu a um desejo, mas a um estudo lógico pois rapidamente percebi que esta seria a profissão com maior empregabilidade.

- Mas acredite, que o melhor do sonho não está na conquista final… Apenas no caminho até lá!

- Acredito que assim seja. Mas prefiro não sonhar… Nem de noite!

- Se ninguém sonhasse viveríamos muito longe desta realidade. O sonho é que faz andar o mundo…

- Fez. Não faz mais! Hoje vivemos num mundo adepto de certezas e pragmatismos. Ninguém mais quer saber se o sonho comanda a vida… Sonhar com algo, como forma de vida, é somente uma mera utopia… ultrapassada.

- Nunca vi o mundo por esse prisma… sinceramente. E nessa sua filosofia onde cabe a felicidade?

A pergunta tinha rasteira. A resposta dada esquivou-se a ela:

- O que é a felicidade?

 

Carlos e Filipa, dois jovens adultos que tiveram necessidade de emigrar, encontraram a sua oportunidade em Barcelona, há cerca de três meses. Festejariam o Natal longe da família, pela primeira vez. A poucos dias da data, decidiram visitar o Parc Güell; passear era a sua tentativa de atenuar as saudades que já começavam a sentir.

O parque ora brilhava à luz de alguns raios de sol, ora se tornava melancólico sob as nuvens e o rapaz teve que aumentar a luminosidade do ecrã do seu smartphone, enquanto caminhava alguns passos atrás da namorada.

- Carlos, vê o supositório ali ao fundo! – Referia-se ao edifício alongado e prateado, que pertence à Companhia das Águas e é bem visível, se olharmos para a esquerda, na direção do mar.

O rapaz, com quase trinta anos, acenou com a cabeça, emitindo um “hum, hum” aparentemente desinteressado.

 - Vá, larga isso! – Filipa sacou-lhe o telemóvel e escondeu-o na sua mala, abraçando de seguida a cintura de Carlos.

Ele retribuiu o abraço, enquanto observava o caminho à esquerda, atento a todas as pessoas que passavam. Finalmente, avistou os dois homens que esperava - um corpulento e outro mais esguio -, com as caixas negras e compridas aos ombros.

- Filipa… - A voz de Carlos soou fraca e medrosa.

- Não te vou devolver o telemóvel, evitas de pedir!  

- Não é isso… - Voltou a olhar na direção dos homens, inquieto. – Sabes que adoro viver contigo e que valorizo mesmo muito o teu apoio nesta nova fase da nossa vida. Sei que te custa passar o Natal longe dos teus pais. Mas agora também nós somos uma família.

O rapaz acarinhou o ventre convexo da namorada, prenúncio de uma gravidez de cinco meses, e tirou a pequena caixa do seu bolso, ansioso.

- Sabes que não podemos continuar naquele apartamento. É minúsculo…. – Os homens, já mais perto do casal, abriram os estojos dos seus violinos e pouco depois, particularmente familiar para Filipa, esta era a melodia que soava no parque:

 

  

Também Carlos abriu a sua pequena caixa. Esta não continha um instrumento musical, mas sim uma chave, que brilhava sobre o veludo vermelho.

- Quero que sejas minha esposa numa nova casa…

A rapariga pegou na chave com que abriria a porta do lar de ambos e abraçou o noivo, enquanto soltava incontáveis lágrimas de felicidade, talvez exacerbadas pelas hormonas da gravidez.

- Que rico Pai Natal me saíste, Amor!

- Mas foi por pouco que não me estragaste o plano. Estava a enviar mensagens aos músicos para que viessem ter connosco, quando me roubaste o telemóvel…

 

Longe da família, mas sentindo-se em casa, abraçaram-se ao som dos violinos.

  

Vasco nascera no seio de uma daquelas famílias modernas onde tudo era assente numa lógica de verdade, sem subterfúgios nem desculpas.

Deste modo o petiz desde muito novo foi iniciado nas realidades humanas. A barriga da mãe crescia e quando perguntou porquê o pai explicou-lhe, numa linguagem incompreensível para a criança, todo o percurso da concepção de um filho. Mais tarde foi a mãe que teve de se empenhar em desmistificar a razão da avó Lurdes ir todos os domingos a uma casa enorme com muita gente. E a não existência de televisão em casa foi outro problema a ser resolvido.

A criança perdia todos os dias a magia da descoberta do mundo por ela própria. Tudo era desvendado sem segredos nem tabus.

Aos cinco anos Vasquinho já sabia ler e escrever e conhecia com competência quase todos os números. Uma vantagem em relação aos colegas da mesma classe, observava orgulhoso o pai, em véspera do começo da escola. Colégio privado claramente, pois não havia tempo a perder na aprendizagem.

No entanto certo dia o gaiato regressou a casa em silêncio. Em demasia, confirmava o pai. Está doente, diagnosticava a mãe, enquanto dava a papa à criança mais nova da família. Preocupados carregaram Vasco com demasiadas perguntas. Indefeso e triste Vasquinho acabou por revelar o seu drama:

- Os meninos lá da escola zangaram-se comigo…

- Porquê? O que fizeste? – perguntou o pai num tom preocupado.

- Eu não fiz nada. Só disse que o Pai Natal não existe!

- Pois não… - confirmou

- Mas eles não acreditaram em mim.

- Ora que importa isso… A verdade é que o tal de Pai Natal de encarnado vestido é uma invenção duma marca de bebidas.

- Eu sei papá, tu já tinhas dito isso.

- Ora. Porquê então ficares triste, quando sabes a verdade?

O menino nada disse. Mas os olhos enchiam-se lentamente de lágrimas. O pai olhou a mãe e encolheu os ombros sem saber o que dizer. Com doçura e meiguice aproximou-se mais do menino, pegou nele e sentou-o nas suas pernas. O filho encostou a cabeça ao peito do pai e começou a chorar. De mansinho, como se lavasse a sua alma tão nova mas já tão amargurada.

Quando parou olhou o pai e falou:

- Posso pedir uma coisa, papá?

- Claro Vasco. Diz lá o que queres…

- Papá deixa-me também acreditar no Pai Natal!

22 Dez, 2014

400 palavras - VII

A notícia penetrou-lhe na alma tal qual um murro na boca do estômago. A dor ficara presa dentro de si sem hipótese de sair. Um tormento!

Em toda a sua já longa vida habituara-se a lidar com o imprevisível e o inesperado. E acatara serenamente tudo o que o destino, ou fosse lá o que fosse que lhe chamassem, lhe reservara. Tudo… menos aquele momento.

Aceitara que a mãe tivesse abandonado o pai, trocando-o por um qualquer artista plástico de qualidade assaz duvidosa. Acatara com condescendência que a mulher se tornasse alcoólica por viver ociosa. Concordava que os filhos o deixassem só, fugindo certamente a uma mãe que jamais os soubera educar.

A sua vida resumia-se por isso ao dinheiro que ganhara e ao que com ele conseguira adquirir. Não tinha amigos verdadeiros, nem familiares próximos que o amparassem. Estava só no mundo. Mas esta solidão não o magoava.

Uma singela lágrima tremeu nos olhos, teimando em correr pela cara bem escanhoada. Passou as costas da mão pela face e limpou o sal humano.

Tanta raiva contida, quantos desejos adiados, tantas palavras silenciadas… para nada! Restava a pergunta: valera a pena?

Nem pensou em responder.

Em passo lento entrou no escritório, onde prateleiras com milhares de livros que nunca lera, forravam as paredes. Em cima da secretária uma moldura que ele pegou e virando-a para si reparou nos seus três filhos ainda pequenos. Lembrava-se tão bem daquele dia na sua casa da praia com os descendentes no areal e a mulher na cama a curar mais uma das muitas e usuais bebedeiras.

Sentou-se num velho “fauteil”, herança de um avô belga, encostou a cabeça ao braço e ficou ali estático a contorcer-se com aquela dor que se embrenhara na alma. Algo dilacerante que o queimava por dentro.

Algures na imensa casa silenciosa e fria tocou um relógio. E depois outro. Deixou que o tempo passasse lentamente e tentou simplesmente não pensar. Pela primeira vez em muitos anos desligara o telemóvel. Queria estar em silêncio, carpir somente a mágoa que o consumia.

Olhou então para o pequeno móvel que ladeava a poltrona herdada, onde um candeeiro de loiça irradiava uma luz quente e amarela. Ao lado do pequeno lustre mais fotografias e claro está mais recordações.

Serenamente abriu a porta do pequeno móvel, meteu a mão dentro como se tivesse a certeza do que ia encontrar e finalmente retirou a pistola.

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