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A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

09 Dez, 2014

400 palavras - II

Teobaldo chega a casa e liga o interruptor da luz. Nenhum sinal!

Insiste. O mesmo resultado!

- Será que não paguei a conta da electricidade?

Tenta num instante, relembrar-se e tem a certeza de ter pago.

Teima. Nada.

Finalmente penetra no apartamento e aguarda que a visão se habitue à escuridão.

- Provavelmente o quadro dos fusíveis está desligado… - ocorre-lhe.

Depois apalpa o telemóvel, pega-lhe e com a luz do visor dá alguma vida à entrada. Finalmente é com um misto de espanto e de terror que percebe que a casa está… vazia!

Aponta para o tecto e descobre os fios soltos!

Não sabe o que pensar. A cabeça num turbilhão, entre incertezas e receios, quase implode.

- Calma, calma…

Recua até à entrada e procura situar-se.

- Será que me enganei no prédio? Parvoíce… Então e a chave? – questiona-se.

Decide procurar a vizinha do apartamento ao lado. Toca a campainha.

- Quem é?

Duvidando que saiba o seu nome, responde:

- É o vizinho aqui do lado…

Ouve rodar por diversas vezes a chave na fechadura e surge-lhe uma mulher tão gorda que mal cabe na porta. Veste um robe sebento e cheira mal. Descobre que nunca viu tal figura, mas ainda assim pergunta:

- A senhora é que é a Dona Mafalda?

- Não! Chamo-me Efigénia… e você quem é?

Atrapalhado responde:

- Eu sou o Teobaldo e vivo no apartamento aqui ao lado.

A mulher parece espantada com a divulgação, espreita para trás do homem e continua:

- Que é feito do Leandro e do namorado?

- Como?

- Como o quê? Aqui ao lado até ontem vivia o Leandro com o seu novo namorado. Ou será que você é a nova conquista?

Nem deixou terminar:

- Peço desculpa mas vivo neste apartamento vai para cinco anos, sempre sozinho. E não tenho qualquer namorado… nem namorada!

A senhora vira-se para dentro de casa e grita:

- Ponciano vem aqui à porta se fazes favor! Está aqui um tipo a teimar comigo uma coisa…

Um homem esquálido, tez escura e bigode farto, surge por detrás da balofa mulher. Veste um pijama de flanela aos quadrados e rói o que resta de um palito. Exala um odor nauseabundo a álcool:

Olha para a esposa e pergunta:

- É este gajo?

Teobaldo atemorizado recua dois passos.

Alguém lhe suspira de mansinho:

- Acorda amor, olha que já são horas!

07 Dez, 2014

400 palavras

Preâmbulo

 

Início hoje a colaboração neste espaço com um conjunto de prosas de 400 palavras (nem mais nem menos). Sem título definido para cada um dos textos, este foi um exercício que gostei de assumir. Eis o primeiro:

 

 

Caía uma chuva miúda, quase pó! A luz mortiça dos candeeiros deixava antever traços finos e oblíquos de água fria. Alcina refugiou-se debaixo do toldo de uma velha loja de ferragens, fechada havia muitos anos. A noite não estava convidativa mas havia sempre quem estivesse disposto a comprar felicidade falsa e prazer duvidoso.

Tal como o antigo patrão que a iniciara naquela vida… Uma vida perdida ou talvez não. Doutra forma estaria, aos 36 anos, rodeada de um rancho de filhos que tinha de sustentar, um marido bêbado para aturar, o gado para tratar e as terras para amanhar.

Parou um carro. Saiu da cobertura, aproximou-se da janela que desceu lentamente. Entre sorrisos, disparou um costumado cumprimento:

- Boa noite, sortudo…

- Sortudo?

- Sim! Vejo que queres companhia. E estou aqui para te ajudar…

As frases eram invariavelmente as mesmas, proferidas naquele tom meloso de provocação libidinosa. Afastou-se do carro um pouco para que a apreciasse. O condutor não gostou do que viu e sem nada dizer, arrancou.

Mais à frente duas jovens tiveram mais sorte e entraram na viatura.

Alcina nem pestanejou. Já sabia que era assim. A sua idade trazia-lhe profundos sulcos na face, que nem as camadas de base conseguiam disfarçar.

Todavia o corpo parecia menos mau, assim julgava. Vestia nessa noite uma minisaia curta que mais parecia um cinto. Um top cotado e meias de renda. Por cima, um casaco comprido de um vermelho berrante mas atractivo.

Regressou ao toldo e sentou-se no degrau frio e molhado. Encostou a cabeça à parede e adormeceu. Nesse sono acabou por viajar ao seu passado, umas vezes fantástico, outras nem tanto. Parecia sentir ainda o cheiro do pão acabado de cozer e outrossim do corpo gordo e mal-cheiroso do velho que a possuíra pela primeira vez. Aquele sono levou-a de regresso à sua antiga escola, onde as letras e os números a animavam. E à mãe que desejava colocar a filha a estudar mas o pai, austero e avaro, só pretendia dinheiro.

Sentiu um toque muito ao de leve no ombro. Acordou sobressaltada e deu de caras com um jovem rapaz que a mirava. Perguntou:

- Não achas que és muito novo para andares às meninas?

O jovem voluntário olhou para os colegas ao lado e sorriu. Insistiu:

- Posso ajudá-la nalguma coisa?

Alcina percebendo finalmente o equívoco, respondeu:

- Hum, só gostava de voltar a ser feliz!

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