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A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

29 Jan, 2015

O amigo Rafa

A fama do canito do José Trapas havia ultrapassado e muito as fronteiras do concelho. O animal em causa não tinha uma raça bem definida, era feio como uma noite de tempestade, todavia simpático e muito competente no que se referia à caça!

Por diversas vezes, quando o dono se dignava acompanhar os outros caçadores, era vê-lo em busca de coelhos e lebres. Enquanto os outros cães ladravam tentando assustar a caça, Rafa embrenhava-se, qual furão, debaixo das pedras ou penetrava num silvado mais fechado fazendo saltar com rapidez os animais, para enorme gáudio dos caçadores:

- Como este animal nunca vi nenhum… - afirmava um.

- Será que o ti’ Zé Trapas mo vende? – assumia outro o interesse.

Mas o aldeão gostava pouco das referências ao seu cão. Recolhera-o ainda cachorro num velho palheiro, alimentara-o e mimara-o desde sempre. Era um verdadeiro amigo que ali tinha. Viúvo havia muitos anos Zé acabou por encontrar no Rafa a companhia ideal. E o cão jamais abandonava o dono, fosse para onde este fosse.

De pêlo amarelado, emaranhado e comprido, Rafa tinha todo o aspecto de um puro rafeiro sem eira nem beira. Nem manso nem bravo o canito respeitava o dono e a sua vontade. Conseguia perceber o que Zé lhe mandava fazer e obedecia-lhe com competência. Dormiu muitas noites debaixo do alpendre que dava guarida à porta mas depressa passou para dentro de casa fazendo companhia nas noites frias de Inverno.

Um dia antes da época da caça iniciar, bateram à porta do Zé que tentava sem qualquer dente, roer uma castanha crua. Este escancarou a porta e deparou-se com o Juvenal, um velho amigo da época venatória e não só. Surpreso, convidou a visita:

- Entra Juvenal, fica à vontade – e apresentou-lhe uma cadeira – Que te trás por cá?

- Obrigado amigo Zé, mas vou direito ao assunto: quanto queres pelo teu cão? Amanhã começa a caça e eu estou disposto a dar bom dinheiro por ele.

Admirado com a proposta de negócio, devolveu:

- Tu achas que o meu cão está à venda? Nem pensar…

O outro destapou a cabeça desvendando uma calva lisa e lustrosa, coçou-a com a mão esquerda, mas não desistiu:

- Mas não passa de um cão… É um animal… E eu pago bem!

Retirou do casaco sebento e puído uma velha e gorda carteira e mostrou um conjunto de notas prontas a passar de mão. Assim acedesse o Trapas.

- Não, para mim não! O Rafa é um amigo! E eu não vendo os amigos por dinheiro nenhum…

O outro percebeu que provavelmente o negócio não se fazia. Mas desistir não estava nos seus planos. Insistiu:

- Espera aí tu achas que o animal vai viver para sempre. Um dia fica aí debaixo de um qualquer carro de animais… e depois nem dinheiro nem cão.

- E o que tem lá isso? O Rafa é meu não o dou nem o vendo por dinheiro nenhum.

Juvenal não pretendia desistir e por isso mudou de estratégia:

- Então pronto, não me queres vender o cão… estás no teu direito. Mas pelo menos podias emprestar-me para amanhã ir à caça.

Zé olhou para a visita, franziu o sobrolho e perguntou:

- Tu não estás a falar a sério, pois não?

- Claro que estou. Preciso de um cão para ir comigo à caça… E só me lembrei do teu. Ainda te dou dinheiro por cima…

- Mas porventura ter-te-ás esquecido que o Rafa é para mim o meu melhor amigo. E como já te disse a amizade não se compra nem se empresta e muito menos se aluga.

O duelo parecia renhido. O Trapas estava decidido a não largar o seu cão e Juvenal não pretendia um não como resposta. Serenamente o Zé chegou-se próximo da visita e perguntou-lhe:

- Tu ainda estás casado com a Lucinda?

- Ó Zé tu sabes que sim. Que pergunta essa…

- E tu e a tua mulher sempre foram meus amigos?

- Claro. Alguma vez duvidaste?

- Não, não, nunca.

- Então… porque perguntas?

- Bom Juvenal… - e tossiu um pouco como quisesse aclarar a voz – a minha mulher morreu faz daqui a meses, dez anos…

- Já… - interrompeu o outro – parece que foi ontem.

- E desde essa altura nunca mais soube o que era ter uma mulher… Entendes?

- Sim. Mas onde pretendes tu chegar?

- Alugas-me… nem que seja por um dia a tua mulher?

O outro quase caiu da cadeira, tal foi o choque da proposta escutada.

- Tu estás completamente doido? Mas que ideia é essa?

- Tão doido quanto quereres o meu cão.

- Mas… mas… são coisas diferentes- gaguejava.

Foi o momento de Zé Trapas se sentar defronte da visita e explicar-lhe:

- Como deves calcular eu não necessito da tua mulher. Serviu este pedido para te fazer entender que na vida o dinheiro não é tudo! E a amizade, mesmo vindo de um rafeiro, vale mais que todo o dinheiro do Mundo.

Levantando-se dirigiu-se à porta, abriu-a e mostrando assim a Juvenal o lugar para onde deveria ir.

- Portanto tu não me alugas a tua mulher e eu não te alugo o meu cão – concluiu a rir.

Juvenal reconheceu finalmente que não fazia negócio e regressou a casa sem o Rafa. No entanto levou muito com que pensar!

 

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27 Jan, 2015

Chamada anónima

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A pergunta feita assim de chofre parecia trazer outra intenção. Lídia olhou o projector no tecto como fosse ali encontrar a resposta, fez um trejeito com a face e respondeu:

- Já aprendi que não posso dizer nunca! Neste mundo tudo é possível, desde que queiramos.

- Ui Lídia, isso dava pano para mangas. Ficávamos aqui a falar até às tantas… Será melhor não entrarmos por aí.

Ela concordou.

- Também acho! Vai mais um copo? – perguntou, pegando na garrafa de vinho, preparando-se para despejar no copo de Arlindo.

Ele, sagaz e rápido, colocou a mão a tapar o bocal enquanto acrescentou:

- Sabes que dia é hoje? Dia de Ano Novo…

- E…?

- Polícia, teste do balão… Para mim, por hoje, chega de bom vinho…

Ela acatou.

- Que fazes tu amanhã?

- Amanhã não, hoje!…

- Hoje? Mas tu ainda vais trabalhar hoje?

- Claro… Entro todas as noites às onze horas. Só assim posso estudar e trabalhar!

- Eu sei,  já me tinhas dito. Mas sempre pensei…

Deixou a frase a meio porque um toque de telemóvel soou algures. Arlindo levantou-se dizendo:

- É o meu.

Encontrado o aparelho, olhou o visor e desligou a chamada.

- Então, não atendes?

- É de um número anónimo.

De seguida, dirigiu-se à cozinha, enquanto Lídia se recostava no sofá. Sentia-se amorfa, não sabia se do vinho que bebera em demasia ou somente da boa companhia. Arlindo, não obstante a sua origem humilde, era um cavalheiro com uma visão moderna da vida. Muito mais que a maioria dos homens que Lídia conhecera.

Ela ouviu os pratos e talheres na cozinha e percebeu que era tempo de se levantar para ajudar o amigo.

- Achas que somos namorados? – perguntou Lídia encostada ao balcão de granito negro da cozinha.

Arlindo continuou impávido e sereno, a enxaguar a loiça, antes de a colocar na máquina. Parecia não ter ouvido a pergunta. Lídia insistiu:

- Ouviste o que eu te perguntei?

- Ouvi sim, mas acho que ainda é muito cedo para se falar disso. Pretendentes não te faltarão e eu jamais passarei dum mero segurança do teu escritório.

A amiga empertigou-se, poisou o copo meio cheio que trouxera da sala e numa atitude decidida aproximou-se dele. Este percebendo ao que ela vinha recuou dois passos e avisou:

- Lídia agora não, por favor!

Novamente, o telemóvel  tocou. Desta vez, no bolso. Arlindo olhou o visor e acabou por atender. A rapariga assistiu então a um monólogo deveras estranho:

- Estou, quem fala?

- Tu? Mas como soubeste deste número?

- Já calculava. E queres alguma coisa? – questão feita num tom quase sarcástico.

- Desculpa mas não tenho tempo para as tuas idiotices. Passa bem!

 

Abruptamente, Arlindo desligou a chamada e o aparelho, de forma a não ser incomodado. Mas a sua fisionomia tinha mudado. Havia no seu olhar uma espécie de raiva. As faces haviam-se ruborizado de forma estranha. Lídia percebeu que algo estava mal no amigo. Devagar, aproximou-se uma vez mais do homem e num gesto de ternura esfregou o braço de Arlindo. Num tom meigo observou:

- Já percebi que não gostaste do telefonema. Era alguém importante?

O amigo petrificado respondeu num ápice, quase com se fosse um robot.

- Ninguém importante! Era só a minha mulher.

 

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24 Jan, 2015

Reencontro

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Espreguiçou-se como não fazia havia muito tempo. Embrulhou-se num roupão que trouxera de Viena e abriu a janela do quarto. O dia estava luminoso mas frio, muito frio.

Saiu do quarto, dirigiu-se à cozinha e ligou a cafeteira eléctrica. Olhou as horas no relógio do microondas e exclamou:

- Ena, já passa do meio-dia…

Veio-lhe então à ideia a mãe… Alcoólica, era por aquela hora que se costuma levantar. E no segundo seguinte Lídia saltou para a sua infância repleta de tristes episódios, intermináveis viagens e imensas discussões. E eram estas últimas que mais a marcavam. Primeiro a mãe com o pai quando ele chegava sempre muito tarde a casa, desculpando-se com trabalho. Depois o pai a ralhar com a mulher por esta trocar os filhos por uma qualquer garrafa de álcool. Lídia percebia, entendia mas não gostava. Nunca!

A água fervia. Numa chávena colocou o pacote de chá e inundou-a de água quente. Esta mudou de cor até ter um tom castanho-escuro. Sem açúcar nem adoçante. Sentou-se no sofá de grandes dimensões e que raramente usava acendeu a televisão e beberricou a infusão bem quente. Não lhe interessava o que passava no grande ecrã, apenas necessitava de companhia.

Lembrou-se do telemóvel e levantando-se foi à mala buscá-lo. Ninguém lhe ligara com certeza. Porém no pequeno visor encontrou sinal de uma mensagem nova. De Arlindo, às 8 horas dessa manhã. Precipitadamente tentou ler a mensagem mas teve primeiro que desbloquear o aparelho. E com a pressa por duas vezes se enganou. Finalmente quando conseguiu, pode ler:

“Oi miga. Cheguei bem e tu? Ganda noite. Para repetir?”

Um sorriso surgiu na face bonita de Lídia. Pensou ligar-lhe mas depois respondeu à mensagem:

“Repetir? Achas k vou esperar 1 ano?” e carregou na tecla de “enviar”. No segundo seguinte o telefone tocou. Era ele. Atendeu:

- Já acordado. Dormiste pouco…

- Se queres saber nem dormi. Estive a preparar o nosso almaço.

- Nosso?

- Sim, sim que eu vou-te aí buscar… ou tens outra coisa combinada com alguém?

Pareceu-lhe que estavam a andar depressa demais. Ao mesmo tempo desejava e muito voltar a conversar… Foi dizendo:

- Duas vezes a pôr a mesa? Isso sai caro… Provavelmente será melhor tu vires cá, desta vez.

Ele deu uma gargalhada que a fez sorrir uma vez mais:

- Segundo percebi pela conversa desta noite não sabes cozinhar…

- Pois não mas trazes para aqui as coisas e fazemos em conjunto. Ensinas-me…

O desafio estava lançado e Lídia nem tinha consciência do que dizia. Acrescentou:

- Quanto tempo pensas demorar até aqui?

Silêncio.

- Ainda estás aí? Arlindo?

Finalmente ele veio à linha e respondeu-lhe:

- Desculpa tinha o caril a pegar-se e o telemóvel está longe porque está sem bateria.

- Caril? Hum! Gosto disso… Até cheira aqui… Hum e é de quê, se se pode saber?

- Logo saberás…

- Então vou pôr a mesa… Mas a sério quanto tempo?

- Uma hora no mínimo.

Lídia ergueu-se rapidamente, vestiu o mais prático pegou na mala e saiu em busca de uma loja que estivesse aberta. Quando por fim chegou a casa reparou que só tinha 15 minutos. E apressou-se.

Duas horas mais tarde, sentados no imenso sofá, Lídia e Arlindo riam despreocupadamente. Parecia que a conversa da madrugada regressara ao convívio de ambos, que haviam bebido substancialmente bem. O vinho libertara alguns travões sentimentais e Lídia parecia a mais necessitada de falar. Falou durante longos minutos. Da sua vida, dos seus sentimentos, da família. Finalmente concluiu:

- A minha vida não dava um filme…

- Porquê?

- Porque não tem fins felizes.

- Mas já viste o filme da tua vida até ao fim?

- Não… Mas imagino...

 

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19 Jan, 2015

Arlindo

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Foi numa manhã gelada e enevoada de Janeiro que Arlindo nasceu, numa aldeia embutida na encosta da serra fria e pedregosa. Fora o quinto filho e a alegria da sua chegada fora saudada como do nascimento da primeira criança.

- É um rapagão. Perfeitinho! – concluiu a parteira velha e balofa, que fizera vir ao mundo mais de metade da aldeia.

A mãe não sabia se havia de rir ou chorar. O primeiro rapaz… Os anteriores haviam sido somente raparigas. Fora do quarto, bem encostado à lareira pujante, sentado num banco pequeno e puído aguardava Abílio, o pai da criança. Com um longo cavaco ia mexendo o lume, um velho hábito que trouxera de casa de seus pais. Sabia que a mulher era uma corajosa e não escutou durante o parto qualquer grito que fosse. Aguardava pacientemente. Entretanto as meninas haviam sido distribuídas pelos diversos tios.

Quando a porta do quarto se abriu e o recém-nascido apareceu nos braços da avó Filomena, o homem deu um salto e sem nada perguntar deixou que a sogra falasse. Esta olhou-o bem de frente e esticando os braços entregou-lhe a criança com uma declaração:

- Tens aí o teu homem… Sei que andavas à procura de um rapaz…

Nem queria acreditar…

- Um rapaz? – E pegando na criança confirmou o sexo.

Devagar encostou os seus lábios secos e rugosos do frio e deu o primeiro beijo no seu varão. Depois entregou-o à sogra e perguntou:

- Posso vê-la?

- Claro. Ela está à tua espera.

De mansinho penetrou no quarto, agora escuro após o parto e aproximou-se da cama onde Lucinda parecia dormitar. Sem nada dizer deu um beijo na fronte da mulher e retirou-se.  Estava a chegar à porta quando ouviu a mulher perguntar em tom baixo:

- Estás contente?

Abílio voltou para trás:

- Estou… E tu…pensei que estivesses a dormir?

Mas Lucinda nem ouvira a pergunta e quase em surdina voltou a perguntar:

- Que nome lhe vamos dar?

- Não sei, talvez o do padrinho. Agora descansa - saiu então e fechou a porta atrás de si.

Anos mais tarde Arlindo corria atrás das ovelhas e das cabras acompanhando sempre o pai. Vaidoso pelo rapaz que crescia a olhos vistos, Abílio perdia-se em pensamentos e desejos para o jovem:

- Há-de ser um grande homem… este meu rapaz. Nada lhe há-de faltar.

Só que o filho tinha outras ideias e mal pode sair de casa partiu para a tropa. Para trás ficara o cabo da enxada e do cajado. Acabou por ir parar à Marinha, onde viajou pelos malagueiros da vida, mais do que esperavam e desejavam Lucinda e Abílio. Deixou a vida militar por vontade própria mas depressa arranjou emprego. Foi sempre saltitando de trabalho até encontrar um à sua vontade.

Da aldeia trouxera apenas um desejo: voltar a estudar, ser mais alguém… que as irmãs. Apenas uma destas parecia estar melhor que as outras. Partira para a Alemanha atrás de um estúpido romance sem futuro mas por lá ficara a trabalhar. As outras haviam casado, engordado, parido uma ranchada de filhos e trabalhavam que nem moiras para manterem as suas casas em ordem.

Arlindo olhou o relógio e esperou que Gino aparecesse na sua habitual farda, para o substituir. Enquanto aguardava na sala principal de segurança, voltou a olhar a mesa onde ceara bem acompanhado. Fora uma noite tão diferente e tão marcante que jamais se esqueceria.

Perguntou a si mesmo como uma mulher com tanto poder podia ser tão infeliz. Percebeu pelas longas horas de conversa, que Lídia era uma mulher dura, marcada pela frieza duma vida passada sem família. Ou pelo menos muito ausente. E depois lembrou-se das festas na casa dos seus pais, sempre sem brinquedos, era certo, mas com muita gente à sua volta.

De olhos postos nas televisões olhava mas não via, tal era a viagem…pelo passado. Uma mão tocou-lhe no ombro e Arlindo deu um salto, assustado. Era Gino!

 

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14 Jan, 2015

Duas pistolas

I

O temporal da noite não deixava quase ninguém descansar. Ora era o vento que sibilava por entre as frestas das velhas portadas de madeira ou a chuva que jorrava do céu em torrentes diluvianas e batia na telha vã. No quarto tentavam descansar de mais um dia de trabalhos Jacinto e a mulher Ofélia. Na sala dormiam insensíveis à intempérie os três filhos do casal: Josué, Nelson e Armindo.

De quando em vez a casa de pedra era sacudida por um trovão. Ofélia rezava baixinho enquanto Jacinto pensava na palha coberta. As trovoadas na aldeia não eram frequentes mas quando chegavam tornavam-se tenebrosas. Mesmo que alguém assumidamente não tivesse receio do fenómeno, não deixava de respeitar.

Jacinto ergueu-se de supetão da cama e perguntou:

- Não ouviste bater à porta?

Ofélia receosa e sonolenta respondeu:

- Acreditas que alguém sai à rua com este tempo?

Jacinto teimou:

- Tu tás mouca mulher… Ouvi bater à porta!

Num gesto decidido saltou para dentro das calças sujas, puxou os suspensórios e mesmo descalço foi confirmar a desconfiança. Pegou num coto de vela, acendeu-o devolvendo ao quarto uma luz ténue e mortiça. Encaminhou-se para a porta quando ouviu alguém do lado de fora chamá-lo:

- Jacinto oh Jacinto!

A desconfiança estava confirmada. Retirou as duas ripas que seguravam melhor a porta da intempérie, rodou a chave e escancarou a sala ao temporal da noite. Um vento forte penetrou no lar e trazendo com ele a visita inesperada. Jacinto olhou para o homem e espantou-se. Refeito do choque de alguém com aquela borrasca se atrever a sair de casa, perguntou:

- Manel? Que fazes aqui a esta hora e com este tempo?

O outro não esperou pelo convite, entrou e sentando-se numa carunchosa cadeira, largou um saco de serapilheira no chão enquanto sacudia as roupas ensopadas. A respiração parecia ofegante e só ao fim de algum tempo Manuel respondeu à questão:

- Desculpa Jacinto aparecer assim, mas estou metido num grande sarilho…

Jacinto e Manuel eram amigos desde sempre. Não havia entre eles qualquer segredo. A não ser…

- Manel que fizeste desta vez? – a preocupação na voz do anfitrião era evidente.

- Nada eu não fiz nada – respirou fundo e voltou – apenas estou a tentar ajudar um camarada de tropa.

- Hum cheira-me que vem aí algo que não vou gostar de ouvir.

- Eu não fiz nada! Foi o Luís Carriço que se meteu numa embrulhada. Acho mesmo que matou um tipo…

- Matou um tipo?

- Creio que sim… Mas diz que foi em legítima defesa. Mas o problema vem agora…

- Mau…

- Ele pediu para fazer desaparecer… as pistolas dele! – e apontou com o queixo o saco que jazia na lage.

- Pistolas?

- Sim as armas do crime.

- E que tenho eu a ver com isso?

- Ele não te conhece e tu podias fazer desaparecer as fuscas…

- Tu já viste o que me estás a pedir? Que seja tão criminoso quanto esse teu amigo. E mais, como pensaste que eu poderia resolver o assunto? Eu tenho uma família a sustentar - e apontou para os filhos que dormiam.

O outro baixou a cabeça quase ao nível dos joelhos e afirmou:

- Estou metido numa grande sarilhada. E não posso dizer ao homem que não. Safou-me tantas vezes de ser apanhado quando eu me desenfiava… que agora fiquei refém deste pedido.

Jacinto coçava a cabeça. Também ele devia favores a Manuel… Mas o pior era imaginar um sítio onde esconder tais armas. De súbito lembrou-se:

- Mas ele quer recuperar estes brinquedos?

- Não, não. Ele pediu-me que as fizesse desaparecer para sempre. Para sempre ouviste?

- Ouvi, ouvi… Para isso só há um lugar…

- E qual?

- Tenho numa das minhas fazendas um algar muito fundo. Um dia caiu para lá um borrego e por lá ficou… Aquilo é impossível de lá chegar, ao fundo. Nem sei quantos metros tem… Talvez seja o lugar ideal…

Manuel levantou-se num ápice e agarrando-se ao amigo deu-lhe um abraço, dizendo:

- Nunca mais esquecerei este favor, ouviste? Jamais…

Jacinto afastou o encharcado amigo, comunicando:

- Amanhã vamos lá!

Mas Manuel tinha outras ideias:

- Amanhã não, agora!

Jacinto olhou-o e declarou:

- Tu achas que não tenho mais nada que fazer… Preciso descansar. E não sei se reparaste chove a potes.

- Melhor ainda. Assim ninguém nos vê…

Manuel tinha alguma razão. Se era para esconder as armas aquela hora com aquele tempo era preferível do que durante o dia. Mas a fazenda ainda era longe e de acesso difícil por entre carrascos e medronheiros. Por fim assentiu:

- Está bem, vamos lá. Deixa-me vestir.

Jacinto saiu da sala onde as crianças dormiam serenamente mesmo após o longo diálogo enquanto Manuel se aproximou da lareira negra onde um tição de oliveira muito velha ainda ardia, devagar.

Jacinto apareceu finalmente preparado para a chuva dizendo:

- Tu vais comigo agora…

Esta indicação não agradou a Manuel, mas perante a forma autoritária como Jacinto falara, aceitou o destino sem nada dizer e pegou no saco.

A porta abriu-se, o vento penetrou na casa e os homens penetraram na tempestade.

II

A Primavera desse ano mostrava-se deslumbrante. Após um Inverno rigoroso, as flores e a erva nasciam pelos prados com profusão. A candeia das oliveiras mostrava-se já com grande fulgor prevendo-se uma produção em grande quantidade. Por todo o lado charruas rasgavam as terras moles. A vida aldeã em toda a sua pujança…

Jacinto agarrado ao cabo do arado, fendia a terra vermelha, atapetada por um manto de erva verde e viçosa que o gado não comia tal era a fartura, num vai-vem permanente e laborioso. Os seus pensamentos vadiavam pela sua juventude e um assobio leve e feliz acompanhava-o.

Estava tão embrenhado na sua tarefa que nem viu dois homens que se aproximaram vindo da estrada de pedra. Vestiam fatos e usavam gravatas negras e pareciam ter caras de poucos amigos. Quando Jacinto deu por eles já ambos estavam muito perto dele. Estancou a correria, sacou do velho lenço, secou o suor que corria pela testa e cumprimentou os visitantes:

- Bom dia… cavalheiros!

Os outros nem se dignaram cumprimentá-lo. Foram directos ao assunto:

- É o Jacinto?

- S… sou… – gaguejou assustado o lavrador.

- Conhece o Manuel da Cruz?

- Sei lá… Conheço tantos Manéis…

- Oiça… não brinque connosco. Conhece ou não o Manuel?

Jacinto atemorizou-se com os homens. Na verdade havia diversos com aquele nome da aldeia, mas raramente se sabia o apelido. Levou a mão à boina que lhe tapava as cãs e devolveu:

- Eu conheço diversos homens com esse nome… Agora com esse apelido…

Um dos homens aproximou-se ainda mais e quase sussurrando, perguntou:

- Jacinto nós queremos saber das armas…

- Quais armas? – O coração de Jacinto batia agora de forma acelerada.

- Ó companheiro… nós sabemos de tudo. O teu amigo Manuel deu com a língua nos dentes… e denunciou-te.

- Denunciou-me como?

- Não te armes em esperto comigo, ouviste?

Jacinto lembrou-se da tal noite de borrasca passada havia alguns meses e da história do Manuel. No tempo que servira no exército ouvira falar daquela gente: agentes de uma polícia especial, com métodos de fazer falar até um mudo. Arrepiou-se ao imaginar o que teriam feito ao Manuel. Serenamente foi dizendo:

- No inverno o Manuel Carroceiro, meu amigo de infância, pediu-me para guardar um saco, mas eu não sei o que ele trazia… - mentiu.

Perante esta última declaração os homens acalmaram mas não desarmaram:

- De certeza que não viste o que o saco tinha?

Jacinto teria de mentir agora de forma mais veemente. O amigo denunciara-o mas o camponês aguentava-se. Foi então dizendo:

- Claro que não, meu caro senhor. O Manel apareceu lá em casa e pediu-me para deitar fora aquele saco. Até lhe perguntei porque não o deitava ele ao que me respondeu que não tinha onde… Depois no dia seguinte fui a uma propriedade minha e deixei lá o saco…

- E agora vamos lá buscá-lo.

O coração de Jacinto quase parou. Seria impossível lá entrar e… sair. Um nervoso miudinho apoderou-se dele mas foi explicando:

- Deitei um saco num buraco que é tão fundo, mas tão fundo que ninguém lá chega…

Os outros riram-se e dando-lhe uma palmada quase amigável nas costas de Jacinto foram acrescentando:

- Agora temos uma boa razão para lá ir medir a profundidade.

Jacinto tremia. Interiormente amaldiçoou a hora em que abrira a porta ao amigo. Um sarilho complicado que teria de resolver, pois os homens não pareciam ser gente para esperar. Finalmente avisou:

- Mas eu não tenho cabos suficientes para lá ir ao fundo. Vão ser necessários muitos metros de corda…

- Faz como entenderes… Queremos as armas cá fora. E depressa!

- E tem de ser hoje?

- Se não for hoje vais passar uma noite aos calabouços de modo que não fujas…

Jacinto olhou a serra, depois o céu anil e finalmente baixou a cabeça e assentiu:

- Bom então deixem-me ir a casa guardar o gado e buscar baraças.

E dirigiu-se para o caminho donde teriam vindo os homens. Estes desviaram-se o suficiente para deixar passar o arado pesado e frio e seguiram o camponês. Em breve chegaria a hora do almoço mas ele nem tinha fome. Por isso disse à Ofélia:

- Não contes comigo para almoçar.

A mulher assustou-se:

- Mas o que se passa homem?

O marido não pretendia preocupá-la:

- Coisas de homens. Já venho.

Sem dar mais nenhuma explicação Jacinto foi ao estábulo, onde as vacas já comiam serenamente e procurou por entre muitas alfaias diversos cabos e uma velha lamparina de azeite. Finalmente pronto partiu ao encontro dos homens que o aguardavam no caminho para a sua fazenda. Aqui chegados dirigiram-se para um monte de mato. Jacinto retirou alguns ramos deixando a descoberto no chão um buraco com certa de um metro de largura. Todos espreitaram para dentro do buraco.

Jacinto preparou-se. Passou a corda por um tronco de uma oliveira. Atou os cabos uns aos outros e finalmente acendeu a lamparina. Atou o cabo à sua cintura e preparou-se para descer. Mas antes avisou os homens:

- Quando sentirem a corda a ser puxada com força é o sinal para me tirarem lá de dentro.

- Claro amigo. Nós não lhe queremos mal. Só queremos as armas. Traga-as e vamos logo embora…

 

III

Jacinto já nem sabia se havia de ter medo, só queria sair daquele pesadelo o mais depressa possível. Em silêncio fez uma breve oração. Nunca fora de evidentes práticas religiosas mas acreditava que só Deus o poderia ajudar.

O tempo passava e a impaciência nos homens passou a ser evidente.

- Vamos lá a despachar isto que não quero dormir aqui – disse um deles.

Devagar o aldeão ajeitou-se e preparou-se para descer. Mas antes acendeu a lamparina que prendeu com uma baraça ao velho cinto que apertava as calças. Devagar embrenhou-se no buraco escuro. Ia à sorte pois não imaginava a que profundidade teria de chegar. Mesmo descendo lentamente depressa ficou sem luz. O buraco era estreito e foi descendo encostando-se à parede fosse com os pés ou com as costas. Num ápice a entrada passou a ser apenas uma lua, cada vez mais pequena. Começou a sentir frio mas não parou. Ainda não olhara para baixo desde que iniciara a descida pois a sua visão ainda não se habituara totalmente à escuridão.

Num segundo tudo de alterou. As paredes pareciam ter fugido e ele não tinha onde se apoiar. Passou a baloiçar. Foi a altura de perceber o fundo. E este parecia… perto, já ali a um metro, pouco mais, de si. Deu-lhe tanto ânimo esta visão que desceu mais depressa sempre a baloiçar. Sentiu pelo som que a lamparina poisara no chão.

- Terei chegado?

Mas a dúvida permanecia ainda. Quando os pés tocaram o chão duro. Pegou rapidamente na luz e procurou o saco. Olhou em redor e a dois metros encontrou-o. Pegou-lhe e atou-o a si com vigor de forma a não perdê-lo.

Depois aproveitou e olhou à sua volta aquilo que a luz mortiça lhe deixava ver. E maravilhou-se. Das pedras de tantas cores escorria água. Um arrepio atravessou-lhe o corpo. Era o sinal de regressar. Espreitando o chão reparou nas diversas ossadas dos animais que para ali haviam caído. Uma aventura fantástica que ele guardaria para um dia contar aos seus netos.

Puxou a corda com força e no instante seguinte sentiu-se a ser içado. Muito mais devagar que a descer. Quando voltou a sentir as costas protegidas ajudou a elevar-se até à superfície. O dia caía já. Os homens esperavam-no. Ajudaram Jacinto a sair e este desatou o saco e entregou-lhes a razão daquela misteriosa aventura.

- Ora então cá estão elas. Bom trabalho! – disse um dos homens pegando no saco sem o abrir.

Jacinto não queria saber de mais nada, desejando somente regressar a casa. Perguntou então enquanto recolhia todo o cordame:

- Posso ir embora?

- Claro. Cumpriste a tua parte nós cumprimos a nossa.

Jacinto pegou em todos os apetrechos e partiu pela vereda abaixo. Já suficientemente longe desviou-se do trilho que costumava levar e encetou por um carreiro diferente. Mais à frente saltou o muro e entrou num terreno mal tratado tal era o mato. Conhecendo o caminho embrenhou-se no arvoredo até encontrar um monte de pedras. Aqui rodeou o marouço e escolhendo uma só pedra retirou-a do lugar. Debaixo apenas um buraco. Meteu a mão lá dentro e retirou um cabo. Puxou-o uma quantidade de metros até que da ponta aparecesse um velho saco de serapilheira. Abriu o saco e reparou nas pistolas ainda em bom estado.

- O Manel tinha razão. Aqueles tipos não são de fiar.

E voltou a atirar o saco para o buraco.

 

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11 Jan, 2015

O dia seguinte

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Quando acordou sentiu-se diferente. Havia muito tempo que não dormia assim. Em paz. E tudo por causa da noite e madrugada passada com ele, num local diametralmente oposto ao que seria de supor para a época do ano.

O convite que lhe fora endereçado, à laia de desafio, tivera o condão de a acordar para outra realidade. E em boa hora o aceitou pois jamais nos seus trinta e quatro anos de idade tivera um fim de ano assim... tão especial.

A sós com um homem, um mero segurança do prédio onde trabalhava. Todavia todas aquelas horas passadas pareciam ter sido somente breves minutos, tal fora a intensidade dos acontecimentos. 

Após o convite estranho mas sincero, ela aceitara partilhar a ceia que ele próprio preparara. E quando passados dez minutos o foi encontrar no lobbie do prédio, onde apenas as luzes de segurança se encontravam acesas, jamais imagina o que lhe reservaria essa noite.

Algures no mesmo andar e após ter passado um sem número de portas viu-se numa sala ampla onde numa parede surgiam incrustadas dezenas de televisões, cada uma delas correspondendo a uma câmara, espalhadas pelo prédio. Dali podia-se ter a noção total de quem andava pelos corredores ou elevadores. Um "Big Brother" em ponto pequeno, tal qual George Orwell adivinhara em 1984. Afastada da parede encontrou uma enorme mesa, repleta. Admirada perguntou:

- Quantos somos?

- Apenas nós dois!

- Mas não acha que é comida a mais só para dois?

- Sôtora... no fim veremos o que sobra!

Foi a altura ideal para fazer desaparecer formalidades. Ela chegou-se a ele e como se o visse pela primeira vez deu-lhe dois beijos na face enquanto dizia:

- Chamo-me Lídia e desde há uns bons minutos deixei de ser esssa coisa de... sôtora. Muito prazer...

Surprendido o guarda acabou por devolver:

- Sou o Arlindo - e entrando no jogo, continuou - muito prazer em conhecê-la... Lídia!

- Em conhecer-te... por tu se fizeres favor.

- Como queiras.

Sentaram-se à mesa. Lentamente iniciaram com as entradas, todas elas saborosas e quase viciantes. Coisas que vinham da aldeia, dizia ele. Depois o vinho fresco e espumoso e ser sorvido em pequenos golos. Finalmente e o mais importante a conversa que naturalmente variou entre tudo e todos. Cada um foi serenamente falando dos seus medos, anseios... desejos, numa espécie de confissões. Depois os risos, as lágrimas, as sensações retiradas do fundo das almas e corações. E o tempo passava... 

Ninguém teve sono. De quando em vez Arlindo olhava o "videowall" procurando alguma anormalidade nas televisões. Tudo conferido regresssava à conversa. Foram horas e horas naquela troca de histórias.

Um sinal de mensagem no telemóvel dela fez com que ela se apercebesse das horas e num salto perguntou:

- Ai já viste que horas são... Cinco e meia... da manhã...

- Ups, daqui a pouco vem o Gino render-me... 

- A que horas vem?

- O turno começa às sete... Mas ele chega com certeza mais cedo. E ainda tenho de fazer a ronda antes de sair.

- Quanto tempo pensas demorar?

- Hoje faz-se depressa... Um quarto de hora chega...

- Deixa que eu arrumo tudo isto.

Ele hesitava:

- Precisas ir descansar.

Ela convicta devolveu:

- Sabes Arlindo... Esta passagem de ano foi simplesmente... inesquecível! Só tenho de te agradecer...

- Agradecer? Agradecer o quê?

Ela não respondeu. Ele continuou:

- A amizade nunca se compra, conquista-se!

Ela aproximou-se de Arlindo, envolveu-o num abraço e deu-lhe um beijo sereno na face. Por fim uma última lágrima rasgou pela maquilhagem já muito estragada e alojou-se na mão dele.

 

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