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A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

28 Fev, 2015

Ao telefone

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Arlindo sabia que a precipitada demissão da Directora-Geral da empresa estava umbicalmente ligada à sua entrada. Muitas vezes lhe ligou e mandou mensagens para poderem falar, antes da sua admissão, mas Lídia emudecera após o último encontro no seu gabinete.

O jovem segurança optara por trabalhar somente de noite para poder estudar de dia. Um sonho alimentado desde jovem… E conseguido com muito esforço. As noites passadas em claro para de manhã partir a correr para os bancos da Faculdade. Depois ia para casa, dormia umas horas, arrumava algo para comer e finalmente voltava ao trabalho nocturno. E era aqui que conseguia estudar alguma coisa. Sempre atento a algo estranho que as câmaras mostrassem, nunca olvidando as rondas obrigatórias, Arlindo conseguia gerir o seu tempo e os seus estudos.

E era de tal maneira empenhado e competente, que depressa se destacou dos outros colegas, originando que um dos professores ficasse com ele debaixo de olho. Assim que o Professor Maurício Vilela teve entre mãos um novo projecto chamou Arlindo para o ajudar.

Haviam passado três longas semanas desde a anormal saída de Lídia. Arlindo mostrava-se interessado em todas as matérias, tinha um raciocínio rápido e coerente e uma memória soberba. Depois lia muitos códigos jurídicos. Sabia que esse conhecimento prévio dos diplomas legais lhe seria favorável. Todavia havia aquela pedra no seu sapato…

Sentado na cama Arlindo sentia-se triste. Aprendera a gostar de Lídia, sabia-a uma mulher corajosa e valente e por isso não entendera aquela reacção… Pegou no seu telemóvel e pensou ligar-lhe, mas de certeza que ela não atenderia. Então sacou do aparelho que a empresa lhe fornecera e ligou. Ao fim de dois toques Lídia atendeu:

- Estou, faça favor de dizer quem fala…

- Fala Arlindo… Lídia. Mas por favor não desligues, por favor – quase gritou.

Um silêncio. Mas ela continuava em linha. Esperou que ela falasse:

- O que é que tu queres?

Percebia-se na voz dela uma amargura e tristeza. E porque não revolta…

- Lídia, creio que somos pessoas crescidas. Não precisamos desta guerra. Não nos leva a lado nenhum… - a calma de Arlindo exasperava-a. Como podia ele ser assim… tão sereno, tão senhor de si?

- Tu acreditas numa verdade, mas essa pode não ser fiel à realidade… É somente a tua verdade! Eu quero e desejo, com calma explicar-te tudo.

Finalmente ela falou:

- És um pulha! Conheceste-me para ires para a empresa… Nunca imaginei… Nunca!

- Lídia escuta. Eu tenho provas de que tudo o que estás a pensar é mentira. Foi unicamente uma grande coincidência…

- Eu não acredito em coincidências! És um sacana da pior espécie.

Foi então que Arlindo utilizou as palavras como arma, tal e qual aprendera da faculdade:

- Meu amor… lembras-te da pergunta que me fizeste naquele almoço em tua casa?

E sem esperar resposta continuou:

- Perguntavas tu na altura se éramos namorados e eu respondi-te que era cedo para falar disso… Hoje tanto tempo passado, tenho a certeza que sempre o fomos sem nunca o assumirmos. Desde a primeira noite de Ano Novo naquele antro da segurança… Lembras-te?

Pareceu-lhe ouvir chorar. Mas calou-se e aguardou que Lídia falasse. Ouviu ela a assoar-se e finalmente a voz suave como veludo:

- És um cretino. Eu não quero acreditar em ti, mas o meu coração… manda dizer que sim! Arlindo… que fizeste de mim?

- Meu amor, tu serás sempre a Lídia… valente, austera, pragmática e competente. E triste, só, desconfiada e carente.

Sem saber a chamada desligou-se! Precipitadamente voltou a ligar mas uma menina avisou-o que o aparelho estava desligado. Aguardou então.

Passou meia hora até que o telefone voltasse a tocar. Desta vez era o patrão:

- Caríssimo Doutor, como está?

- Bem… porquê?

- Então já convenceu a sua menina a regressar à empresa?

Estupefacto Arlindo desligou a chamada.

 

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27 Fev, 2015

Ora...

  

É agora.

 

Contra o que sempre fora

Arrisquei-me lá fora,

Longe da casa acolhedora

Que foi a prosa, outrora.

 

Pouco poeta, nada escritora,

Experimento se o verso revigora

A inspiração incentivadora.

 

Não sou talentosa senhora,

Sou antes uma impostora.

Rimas encontrei agora

Em pública fonte auxiliadora.

 

Medicação hipotensora

Venha ela, salvadora,

Que os leitores com tanta "ora"

Irritaram-se, logo, sem demora.

 

Acalmai, leitor ou leitora,

Que a sexta-feira trabalhadora

É do fim de semana precursora!  

 

"Melhora. Por favor, melhora.

Que poesia arrasadora!

Porque a criaste, Dora?"

 

De mansinho, devo ir embora

Pois já desejam atirar à autora,

Insistentemente molestadora,

Uma rocha destruidora!  

 

Mas não esqueçam, já agora,

Que pessoa atiradora

De telhados de vidro é possuidora!

 

   

O seguinte conto foi inspirado por esta questão que o Homem Sem Blogue propôs aos seus leitores:

"Vamos supor que existe um comando que permite pausar o mundo. Por outras palavras, o dono do comando tem a possibilidade de parar a rotação da Terra ao mesmo tempo que pode aproveitar esse momento para fazer o que quiser e com quem quiser. Sendo que cada pessoa só pode usar o comando uma vez. Se este comando estivesse nas tuas mãos... o que farias?"

 

___

 

O velho japonês, acompanhado pelo seu invulgar instrumento de cordas, está ali sentado de manhã à noite, todos os dias, todas as semanas, no canto da estação de metro. Sempre com um ligeiro sorriso e um olhar tranquilo. Como raio pode o homem aparentar tanta calma, num ambiente dominado por azáfama? Como lida tão bem com o desinteresse que a maioria lhe concede? O meu estômago deu aquele nó que já todos sentimos, em alguma ocasião. Ele merecia um palco. Merecia encher um auditório com a sua tranquila melodia, ao invés de ter como cenário um corredor desprovido de luz natural. Merecia uma remuneração decente ao fim do dia, porra!

 

Ajustei a gravata – o meu tique, antes de tomar uma decisão difícil – e fiz aquilo que adiara desde que a minha mãe me dera o aparelho. “Já tens 10 anos, Ricardinho. A mamã tem uma coisa muito importante para te dar, que todos os meninos recebem quando têm a tua idade.” E recebi o comando, tal e qual aquele pequeno e verde que abre o portão da minha casa, mas preto e com um pequeno visor.

 

Chegou o momento e carreguei no botão. Fi-lo pelo idoso japonês; pelo acordeonista que acumulara uns trocos e os perdera logo de seguida, ao tentar tirar uma sandes mista da máquina avariada; pela miúda da cafetaria, que timidamente distribuía os panfletos com o pedido de ajuda monetária para o tratamento do seu primo; pelo mendigo de olhar vazio.

 
E tudo parou. Fiquei rodeado de estátuas que, ainda há segundos atrás, tinham vida. Alguns ficaram com expressões faciais ridículas e não consegui conter o riso. E o puto que descia os degraus de dois em dois e ficou no ar, entre o penúltimo e o chão? Gostaria que vocês o conseguissem ver!

 
Mas depressa voltei ao meu objetivo. Olhei de novo para o comando, onde li 4.56. E agora 4.55.

 
O restante tempo foi passado em modo “Robin Hood”. Subi, a correr, a escada do metro e dirigi-me à Sacoor, à Zara, à Bertrand, à Giovanni Galli e, por fim, a uma loja de bijuteria cujo nome nem sei. Fui, portanto, aos estabelecimentos mais próximos da pastelaria e trouxe 20€ de cada um. Ainda saquei uns trocos e rapinei um casaco.


A caixa de donativos para o primo da rapariga (“Carla”, li agora no cartão que pende da sua blusa) ficou a conter mais 100€ do que anteriormente. 

 

1 minuto e 24 segundos. Senti o meu coração palpitar assertivamente, como se quisesse escapar do tórax. 

 

Os trocos caíram dentro da boina que jazia no chão. O acordeonista ganhou o lanche da mulher bem-parecida que pedira uma sandes mista, na pastelaria. O casaco foi colocado junto do sem-abrigo de barba branca.

 

2 segundos.

 

Senti-me inexplicavelmente cansado. Mirei a boina do japonês e fiquei surpreeendido com a quantidade de moedas que a recheava. Ia jurar que ainda há pouco estava quase vazia... Devo estar a precisar de uma boa noite de sono.

 

Recordo-me dos tempos idos,

Dos tempos sem tempo.

Lembro-me dos dias tristes,

E das amarguras vãs.

 

Recordo-me de alegrias fugazes,

E sonhos longamente perdidos.

Lembro-me das noites brancas,

E de amores sentidos e amados.

 

Recordo-me das faces claras,

Dos sorrisos e das carícias.

Lembro-me das figuras simples,

Mas serenas e amigas.

 

Recordo-me de não ser,

O que sempre desejei.

Lembro-me de querer  

O que nunca pude.

 

Recordo-me que o amor,

Foi então a chave de tudo.

Lembro-me que amar

Foi o cerrar de um ciclo.

 

O que será que ainda me resta?

 

 

Também aqui

15 Fev, 2015

O pobre e o rico

A noite abraçou a aldeia com o seu manto negro e silencioso. Apenas a chuva que caía abundantemente se escutava a bater nos telhados ou a cair dos beirais.

Júlio atravessava o casario devagar, cansado de mais um dia de jorna dura. Só assim podia sustentar a pobre família. A sua casa, que mais parecia um pardieiro, situava-se no outro lado da povoação. E o frio e a chuva que se entranhava no corpo franzino tolhia-o ainda mais. O sino tocou oito badaladas. Contou-as como se fossem passos na vida. No lar sabia que encontraria a mulher e a filha que aguardavam por um naco de broa ou umas folhas de couve  para enganar a fome de tantos dias.

- Vida maldita de quem é pobre – concluía.

No instante seguinte apercebeu-se que alguém o chamava. Olhou para o lado e debaixo do alpendre da casa senhorial da aldeia achava-se um homem, vagamente conhecido:

- Arsénio, para onde vais?

- Vou para casa senhor. Porquê?

- Quem te aguarda lá?

- A minha pobre mulher e uma filha pequena.

- A tua família, certo?

- Sim é a única que tenho e para a qual trabalho para sustentar.

O homem saiu do alpendre e entregou a Arsénio um saco. Este recusou a princípio mas o outro insistiu:

- Leva Arsénio para a tua família. Aí dentro encontras um naco de presunto uma galinha pronta a cozer e duas garrafas: uma de azeite e outra de vinho. Aproveita…

Arsénio espantou-se com uma anormal generosidade e perguntou:

- Porquê senhor? Que lhe fiz para tal prenda.

O outro apenas respondeu:

- Partilha com a tua família. Sou rico em dinheiro mas pobre de amigos e família. Sempre pensei que o meu dinheiro compraria tudo…

E vergando-se à conclusão continuou:

- … Mas sei que o dinheiro não compra uma família. Leva homem, leva para a tua casa e partilha com os teus.

Mas Arsénio desconfiava. Pensou um pouco e finalmente aceitou mas impôs uma condição:

- Aceito, sim. Mas vem comigo partilhar a mesa. A minha casa é pobre, muito pobre mas tem sempre lugar para mais um desde que venha em paz.

11 Fev, 2015

Confissão

Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obriga. Os olhos dele estavam fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.

Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.

Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.

- O que eu não dava homem para ouvir de ti uma palavra. Uma só que fosse.

E continuava a passar a colher na papa.

- Tu que eras tão tagarela, tão falador... que me disseste tantas vezes que me amavas...

Meteu-lhe uma colher repleta na boca.

- Não sei se me ouves ou não. Os médicos dizem que não. Estou a falar para ti como se estivesse a falar para mim.

Introduziu a segunda colher de papa.

- Ao fim de todos estes anos só agora sou capaz de te dizer que te amo. E também sei que gostarias de me ouvir dizer isto.

Baixou a cabeça para o prato de papa, que continuava a mexer.

Por isso não viu uma simples lágrima cair no regaço do homem.

 

 

Uma das três mãos esteve dormente. Acredito que até o meu cérebro esteve dormente, com tantas preocupações que foram prioritárias, nos últimos tempos... Mas volto a este espaço acolhedor, tão bem mantido pelo Paulo, pelo José, por música, pelas peripécias do Arlindo e da Lídia e, claro, por vocês aí desse lado. Olá, novamente.

 

Depois das duas partes (aqui e aqui) do "Vivências fictícias", concluo agora as minhas aventuras imaginárias com a Cris, a Tânia e o Paulo. Mas antes vamos dar os parabéns à Tânia, que festeja hoje os seus jovens 36 anos!

 

 

Vivências fictícias III

 

Subíamos a escadaria – ou o que sobrava dela – com passos rápidos, na tentativa de chegar ao cimo antes de a noite cair sobre o Castelo de Hibrato. Tropecei num degrau e caí de joelhos, pelo que Paulo acendeu a lanterna.
Após pisarmos diversas pedras vestidas de musgo, chegámos finalmente ao topo.

 

castelo crepúsculo.jpg

 Fotografia de Cyril Helnwein


O nosso mais marcado receio era ouvir os famosos ruídos. Porém, só conseguíamos escutar os carros a passarem lá em baixo, junto à ponte.
- Vá, vamos lá entrar e despachar isto. – Tânia caminhou na direção do portão e nós espelhámos o seu movimento. Parámos logo de seguida, quando soou um ruído estridente.
Pequenas percussões, rápidas e repetidas, simultâneas a uma forte e súbita rajada de vento. Entreolhámo-nos e concordámos em silêncio: tentei empurrar o portão, que cedeu com alguma dificuldade. Com esforço, finalmente consegui arrastar o pesado pórtico e os nossos cabelos despentearam-se, enquanto os “ti ti ti” metálicos voltaram a ganhar intensidade.
O foco de luz da lanterna foi apontado para o interior da estrutura de pedra e seguíamos, com o olhar, as zonas serenamente iluminadas pelo Paulo. Primeiro, observámos a zona à esquerda. Vislumbrámos um arco, que unia duas colunas outrora majestosas. Ao centro, pudemos ver um lance das escadas para o piso superior. À direita… Brilho.
- Paulo, espera! O que é aquilo? – O desinteresse de Cris transfigurou-se numa inesperada curiosidade. Tânia também se aproximou e ficámos todos, armados em parvinhos, a olhar para aquilo. - Oh, não acredito. Os meus pais têm uma treta dessas no quintal! 

FIM

  

 

Julgamos que somos detentores da razão, mas os nossos pensamentos são, na verdade, incrivelmente limitados. Temos em conta apenas o que é visível, o que é audível, o que é compreensível atendendo ao nosso histórico de experiências. A simplicidade pode tornar-se complexa, se for inesperada. Um simples espanta-pássaros pode produzir medonhos ruídos que, noutro contexto, seriam banais.

Pensamos com palas.

 

07 Fev, 2015

Viver a vida!

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Detestava que marcassem reuniões quase em cima da hora. Geralmente tinha o seu trabalho todo planeado e uma reunião vinda do meio do nada… aborrecia-a olimpicamente.

Quando olhou o seu relógio de pulso percebeu que estava quase na hora e saiu do gabinete em passo apressado. Mas antes:

- Amélia vou para a reunião com a Administração. Anote os recados se fizer favor.

Um pedido desnecessário pois a secretária era muito eficiente e nada ficava por anotar. Preferiu as escadas ao elevador e num instante penetrou no andar de baixo onde se situava a enorme sala de reunião. A porta estava fechada, o que era costume e por isso bateu e acto contínuo abriu a porta. Lá dentro estavam quase todos os outros responsáveis dos diversos departamentos da empresa. Faltava unicamente o Director dos Recursos Humanos. Mas era usual chegar atrasado.

Assim que apareceu esbaforido apresentou as normais desculpas pelo atraso e ocupou a única cadeira vaga. No topo Alexandre Fialho responsável máximo da empresa em Portugal aguardava a chegada de todos os responsáveis. Era um homem já com alguma idade, muito alto, seco de carnes mas senhor duma voz firme e bem colocada. Havia quem dissesse que em tempos frequentara o Conservatório de teatro, mas nunca ninguém conseguira confirmar. Ergueu-se então do seu cadeirão e logo deu inicio à reunião:

- Bom dia. Como sabem a nossa sede em Londres está em profundas remodelações. Após a trágica morte do nosso Presidente Jeremy Bright, os seus herdeiros apresentaram novas propostas de trabalho. Propostas estas que nós já havíamos referenciado como essenciais para a nossa empresa. Deste modo passaremos, a partir início do próximo mês, a contar também com uma equipa de juristas.

Um burburinho encheu a sala mas logo foi silenciado pela voz do orador:

- A consultadoria que fornecemos aos nossos clientes apresenta por vezes algumas lacunas de âmbito jurídico. Dando assim exemplo às restantes filiais espalhadas pelo Mundo, foi superiormente decidido abrir a nossa casa a juristas… Deste modo contratámos um advogado sénior que constituiu, a nosso pedido, uma equipa com outros advogados mais jovens e que nos ajudarão no futuro.

Abandonando o seu lugar, o Administrador dirigiu-se a uma porta que dava directamente para o seu gabinete e abrindo-a deixou que o novo responsável e respectiva equipa entrasse na sala.

De novo na pose de orador anunciou:

- Meus senhores e minhas senhoras apresento-vos o Dr. Maurício Vilela e o Dr. Carlos Palhais, o Dr. Arlindo Neves e o Dr. Baltazar Cravo. Estes serão para já os nossos homens de leis. A partir do próximo mês farão parte da nossa casa.

Lídia deu um salto na cadeira e num gesto irreflectido levantou-se subitamente do lugar e preparou-se para sair da sala. Todavia foi impedida pela voz do Administrador:

- Dra. Lídia quer fazer o obséquio de me dizer onde vai? Que eu saiba a reunião ainda não terminou…

A Directora executiva da empresa corou e numa desculpa muito mal concebida só soube dizer:

-Tem razão senhor Doutor Alexandre, mas necessito urgentemente de sair… Explicar-lhe-ei mais tarde.

Não era costume aquela executiva sair assim das reuniões. Todavia condescendeu.

- Faça favor Doutora. Falaremos então mais tarde.

Fechou a porta atrás de si e naquela sua postura altiva, como era conhecida, procurou as escadas e subiu rapidamente ao seu gabinete onde se trancou.

Uma hora mais tarde saiu vestida como se fosse o fim do dia e disse a Amélia:

- Entregue esta carta ao Doutor Alexandre, se fizer favor!

Amélia assustou-se com a atitude da chefe e a medo perguntou:

- Onde… onde vai Doutora?

Um sorriso aflorou aos lábios rosados e bonitos de Lídia. Baixou-se para que ninguém a ouvisse e segredou à secretária:

- Vou finalmente viver…

 

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O telefone à sua frente tocou. Ergueu o olhar para ver quem era e leu o nome de Amélia. Premiu o botão de voz alta e respondeu:

- Diga Amélia.

- Doutora… tem aqui… uma visita…

- Uma visita? Quem é?

- A pessoa pede para não dizer quem é… Só quer falar consigo…

- É trabalho?

A porta abriu-se de supetão e Arlindo irrompeu pelo gabinete.

- Não, não é trabalho…

Lídia ergueu-se furiosa da sua cadeira, passou pelo homem e dirigiu-se à secretária:

- Amélia... chame-me a segurança, se fizer favor…

Arlindo exibia uma calma e uma serenidade invulgares. Aproximou-se da porta e avisou Amélia:

- Deixe estar que saio já! Não necessita incomodar o meu colega.

Depois encerrou a porta. Lídia teimou em aceder à saída mas com ele na frente percebeu que não conseguia levar a sua avante. Regressou ao lugar naquele ar autoritário como era conhecida na empresa e voltando para os papéis, observou:

- Que tem o senhor para me dizer que eu não saiba já?

Soltando uma gargalhada sonora, Arlindo seduziu:

- Ainda és mais bonita quando estás zangada!

A mulher percebeu que a batalha estava perdida. Aquele homem tinha o condão de a desconcertar. Talvez pela paz que dele irradiava. Ou seria ele um grande actor? Fosse como fosse, haviam passado seis meses desde que ela o pusera fora do seu apartamento naquela célebre tarde de ano novo.

Bastara na altura uma simples frase para tudo se estragar… E ela recordava-se como tivesse sido naquele instante. E ao invés do que seria de supor, Arlindo partira de casa dela sem fazer qualquer intenção em esclarecer o mal-entendido. Percebera que Lídia estava fora de si e aguardou que o tempo aplacasse a fúria da bonita gestora. Mesmo após a recepção daquele enorme ramo de rosas vermelhas quase no final de Fevereiro, no dia dos seus anos, com a frase: “Há quem veja espinhos nas rosas, eu vejo rosas nos espinhos. A.”, Lídia não tentou reactivar a amizade.

Mas ora era chegado o tempo de esclarecer, finalmente:

- Deixa-te que palavreado… Diz-me ao que vens que o meu tempo é caro – recostou-se na cadeira e esperou que o antagonista falasse.

Arlindo vestia uma roupa pouco formal e de mãos nos bolsos, virou as costas à amiga, passeou livremente pelo imenso gabinete e declarou:

- Faz este ano dez anos… A Marinha havia-me dado muita coisa mas não me abrira os olhos para as mulheres. Numa unidade conheci Jessica. Era enfermeira, bonita, charmosa e muito, muito atrevida. Conhecemo-nos no bar do hospital. Dali a poucos dias saíamos a primeira vez e dois meses depois estávamos casados. Nunca tive verdadeira consciência do passo que dera. De tal maneira que nem à família contei que havia casado. E ainda bem… Um dia fui destacado para uma corveta que partiu três meses para os Açores. E ela cá sozinha… Quando regressei ela estava grávida e não era de mim! Nessa mesma noite parti e nunca mais soube nada dela. Mudei de número de telemóvel e apenas um amigo em comum sabia disso. O mesmo que lhe deu o número naquele dia. Juridicamente sou um homem casado mas na realidade sou solteiro faz muito tempo.

Lídia parecia não acreditar numa palavra dele. Já fora demasiadas vezes ludibriada. Quando ele se calou, devolveu:

- Porque é que vieste aqui explicar essa história de faca e alguidar? Acreditas mesmo que vou nessa desculpa?

Ele parecia preparado para a pergunta dela:

- Eu sei que nunca mais vais acreditar em mim… eu sei… Talvez seja por isto que as mulheres são tantas vezes enganadas…

- Porquê?

- Porque não sabem lidar com a verdade… Preferem muitas vezes a mentira… Dói menos!

Lídia deu uma palmada violenta nos papéis que tinha em cima da mesa e ordenou:

- Sai daqui, já!

Pacatamente o segurança dirigiu-se à saída do gabinete, rodou a maçaneta, escancarou a porta e quando atravessou esta disse em tom sonoro para que todos os do lado de fora ouvissem:

- Sim querida eu também te amo!

Amélia baixou a cabeça e riu baixinho.

 

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