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A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

A Três Mãos

A três mãos se escreve, a dois olhos se lê, a um o pensamento que perdura

Já raiava o dia quando abriu a porta do prédio. Subiu ao 6º andar e meteu a chave à porta. Rodou duas vezes e entrou finalmente em casa. Ligou a luz que iluminou profusamente uma entrada bem mobilada. Diversos quadros modernos, uma cómoda herança de família e um candeeiro de pé para além dos projectores que emanavam do tecto falso. Dirigiu-se ao quarto e despiu o casaco comprido, cinza. Descalçou os sapatos de salto alto e desceu ao seu metro e setenta. Sentou-se à beira da cama e foi descalçando as meias pretas. O olhar estava vidrado em nenhures. No seu pensamento apenas a noite que agora terminava. Jamais pensara que era capaz de uma noite assim. Ela, Verónica de Assis Moreno, filha de um oficial do exército já aposentado e de uma professora de inglês, também reformada. A melhor aluna da faculdade de Economia, e gestora de uma multinacional em expansão… Ainda lidava mal com a morte do marido. Mãe de uma criança de sete anos, de férias com os avós maternos, deixara-se, num segundo fatídico, inundar por uma paixão que nunca sentira por ninguém… Mas Filipe parecia ser um homem diferente. Talvez não o fosse. Mas ela queria acreditar que sim. Que era! Pelo menos fora-o, nessa noite.

"O jantar feito e servido por ele. Ela ajudara-o obviamente, enquanto ouviam Alchemy de Dire Straits. Mas ele encarregara-se da parte nobre. Por fim, as conversas, as palavras ditas quase em surdina. A graça que ele mostrava em falar de certos episódios da sua vida. Filipe não era um homem belo, mas tinha uma postura atraente. Humilde e sincero, falava pouco de si e mais na família perdida lá para Trás os Montes. E ela ouvia e ria como já não se lembrava de rir. E chorou quando ele lhe pediu para mostrar a fotografia de Frederico, o filho."

Estiveram horas e horas naquele mundo de palavras e sentimentos. As mãos entrelaçadas nas dele, sentidos ao rubro ou à flor da pele, nem ela sabia já. A música continuava a tocar ininterruptamente mas em volume baixo. E falaram também das canções que gostavam, das bandas que ouviam, quase sempre coincidentes. Tanta coisa em comum…

Verónica estava nua. Dirigiu-se ao chuveiro e deixou que a água tépida a molhasse indefinidamente. Finalmente tomou banho e saiu enrolada num roupão turco cor de rosa. Voltou a sentar-se e regressaram as lembranças dessa noite.

"O digestivo bebido em frente da lareira que acendera de propósito. Um dossier repleto de bilhetes de concertos ao vivo, que Filipe fora ver. E começara muito cedo com os The Police no estádio do Belenenses em 1980 e acabando já com os bilhetes para o Rock’n Rio de 2012 para ver The Boss. E a cada espectáculo Filipe associava uma estória, uma graça."

Sentiu vontade de se vestir e voltar a estar com ele. Fora um cavalheiro. "Quando deram por isso, eram altas horas da madrugada. Filipe levantou-se do sofá e pediu a Verónica que aguardasse. Ela ouvia na cozinha novamente loiça a ser mexida. Quando de repente olhou para Filipe, este carregava um tabuleiro com ovos mexidos e duas canecas de chocolate quente. Ela quase desmaiou…" Precisava saber e perguntou-lhe porquê. Porque a tratava assim? Ele apenas respondeu que ambos gostavam das mesmas músicas e nunca conhecera ninguém assim, com o mesmo gosto dele.

Verónica deitou-se finalmente, nua! E a pensar em Pink Floyd murmurou:

“Wish you were here”

 

Publicado a 1ª vez aqui

27 Mar, 2015

Perspicácia!

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O caminho entre o cemitério e casa foi feito lentamente, como se houvesse uma força a empurrá-los para longe. Lucinda, agora viúva, pendurara-se no braço de uma das filhas. Lídia agarrara-se carinhosamente ao braço de Arlindo. Pela primeira vez sentia o calor do homem que nascera na aldeia e partira cedo para a cidade e com quem desejava partilhar o futuro.

A mãe de negro vestida fixou o olhar no empedrado e desabafou baixinho:

- Que vai ser de mim sem o meu Abílio... o que vai ser de mim...

Mas no mesmo instante parou, virou-se para Arlindo e perguntou:

- Quantos dias ficas cá?

A pergunta fazia naturalmente sentido para a mãe mas não para o filho. A resposta teria de ser dada com pinças de forma a não molestar ainda mais a antecessora. Como era seu hábito ficou a pensar na resposta para depois avançar:

- Mãe... Lamento mas tenho de ir embora ainda hoje. Temos ambos de ir trabalhar - e olhando para a namorada, esboçou um leve sorriso. Lídia devolveu o gesto.

- Mas já? Não ficas dia nenhum?

- Eu venho cá brevemente... Agora que está sem o pai... virei cá mais vezes.

Uma torrente de choro sobreveio à mãe. Finalmente:

- O que fazes por lá, filho?

Arlindo nunca falara aos pais do curso superior recentemente acabado. Gostaria de ter dito ao pai em primeiro, mas o destino ou fosse lá o que fosse havia-o arrebatado primeiro. Respirou fundo e respondeu:

- Sou jurista!

- Isso é o quê?

Não era seu hábito dizê-lo mas compreendeu que só assim a mãe o entenderia.

- Sou advogado...

Lucinda parou subitamente e olhando para o filho de forma firme, perguntou:

- Tu és doutor?

E crescendo com a  voz repetiu:

- Tu és doutor?

Arlindo tremeu um pouco mas acabou por responder:

- Mãe... doutor não é profissão...

Lucinda deixou por breves momentos de o ouvir e declarou:

- O teu pai tinha razão... - e após um mui breve silêncio, continuou - sempre disse que haverias de ser alguém. O teu pai tinha razão...

O filho olhou a namorada e encolheu os ombros. Nada mais podia dizer para esclarecer a mãe. O melhor seria partir e o mais depressa possível. Já perto do seu carro começou a despedir-se das irmãs e da mãe:

- Mãe, tenho de ir... Daqui a umas semanas volto cá, de certeza! Ou quer ir comigo?

- Não, não... eu fico cá! Tenho aqui muita companhia... Só te peço que não estejas tanto tempo sem cá vir...

- Prometo mãe. Regresso muito em breve.

Lídia despediu-se também e meteu-se no carro. Este arrancou devagar e subiu a serra íngreme até à povoação seguinte onde pararam para almoçar no restaurante que Arlindo experimentara no dia anterior. Na praça o mesmo idoso agarrado à velha bengala sentado no velho lugar. Parada a viatura, Arlindo passou pelo homem e cumprimentou:

- Boa tarde ti' Albino...

- B'tarde... - este levantou os olhos para perceber quem o cumprimentava assim. Reconheceu o cliente da filha do dia anterior e lançou uma singela farpa:

- Hum! Reparo que gostou do restaurante?

- Sim, sim gostei...

- Percebe-se...

- Como?

- Até já arranjou companhia... feminina! - e apontou Lídia com a bengala.

Aquele idoso era uma caixa de surpresas. Arlindo esboçou um sorriso e respondeu à brincadeira:

- Estava presa ali na aldeia ao lado e fui lá resgatá-la...

O velho ergueu a bengala na direcção do firmamento, deixou-a cair a ponta no chão e por fim concluiu:

- Cheira-me que foi mais o contrário...

- Não percebi...

- Não? Pergunte ao seu olhar que ele responde...

 

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Tamborilava os dedos no volante ao som de Sultans of Swing, dos Dire Straits. Uma música que ele simplesmente adorava e que estava a tocar naquele instante na Rádio Nostalgia. O trânsito naquela manhã desenhava-se caótico. Filipe experiente e conhecedor logo se lembrou:  “Deve ser algum acidente”. E como costumava dizer para si e para os outros, o que não tem solução está solucionado por si, não se preocupou.

À sua volta as pessoas dentro dos carros reagiam de forma diversa. Atrás uma senhora que já passara o meio século acabava a sua maquilhagem, aproveitando o espelho do pára-sol. Na sua frente uma carrinha fechada, impedia de ver o quer que fosse para a frente. À esquerda evoluía um passeio vazio e finalmente à direita, uma jovem mulher olhava para ele de forma espantada. E sorria. Percebeu que ela reparava naquela sua postura alegre e descontraída, tendo em conta a manhã complicada.

O trânsito palmilhou cinco curtíssimos metros. Devagar. Ele voltou a olhar para a jovem, no veículo ao seu lado, que continuava a olhá-lo com o mesmo sorriso. De repente o vidro da janela dela baixou e ele fez o mesmo ao vidro do lado contrário:

- Bom dia, desculpe incomodá-lo. Não é fácil alguém com este trânsito estar tão feliz assim…

- Bom dia, pois tem razão mas que posso eu fazer? Não melhoro o trânsito por estar aborrecido e assim sempre vou gozando com a música.

- O que estava a ouvir?

- Dire Straits.

- Também gosto. Muito bom dia.

E fechou o vidro.

Filipe nem pôde responder. Fechou também a janela e ficou a ouvir outra música. Agora escutava Creedence Clearwater Revival em Bad Moon Rising.

Um atropelamento fora a origem de tamanho engarrafamento. Passado o local do sinistro, o trânsito fluiu com normalidade. Chegou ligeiramente atrasado ao trabalho e à reunião.

Curiosamente, não se esquecera da jovem que se admirara com o seu tamborilar de dedos. Recordou-lhe as feições: Olhos claros (não conseguira ver a cor!), lábios finos bem pintados, rosto magro sem ser esquelético. Bonita, enfim! Jamais a veria, mas fora curioso aquele encontro matinal.

Decorreram duas semanas e Filipe esquecera-se por completo da jovem.

Numa sexta feira decidiu ir ao cinema, sozinho. O abandono a que fora votado por Carla deixara-o livre de sentimentos, mas também de companhia. Mas antes do cinema havia que comprar algumas coisas para casa. Optou então pelo El Corte Inglês onde tinha o cinema e supermercado. Aqui carregou o carro com compras e dirigiu-se à caixa. À sua frente uma pessoa do sexo feminino, aguardava também a sua vez.  Filipe observou-a por detrás. Trazia vestido um casaco comprido de cor cinza, calçava sapatos de salto muito alto e os cabelos caíam-lhe nas costas de forma uniforme.

De repente a pessoa voltou-se para trás e Filipe reconheceu a jovem que se metera consigo, na outra manhã. Todavia receoso que estivesse a fazer alguma confusão não disse nada. Ela olhou-o. Teve a mesma sensação. A mesma reacção. Todavia ficaram ambos em silêncio.

Mas Filipe depressa magicou um plano. Pegou no telemóvel e simulou que estivesse a receber uma chamada:

- Olá companheiro…

- …

- Estou no ElCI, ando às compras e depois vou ao cinema. Queres vir ter comigo?

- …

- Jantamos depois do cinema e vamos para minha casa ouvir umas músicas. O que é que achas?

- …

- Sei, lá… Dire Straits, diz-te alguma coisa?

Nesse momento a jovem virou-se e olhando-o nos olhos percebeu que Filipe era o homem daquela estranha manhã. Aproximou-se serenamente do homem e sem qualquer inibição beijou-o calorosamente, à frente de toda a gente.

A menina da caixa atrapalhada, disse:

- Podiam-se chegar à frente, se fizerem favor.

Mas eles não chegaram.

Deixaram ali mesmo as compras e partiram apressados para casa dele, para ouvirem “Romeo and Juliet”.

 

 

Publicado a primeira vez em 21/04/2012, aqui.

23 Mar, 2015

Na aldeia

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O relógio digital do carro marcava meio-dia, talvez daí a razão da fome que sentia. Como faltavam poucos quilómetros para chegar à aldeia achou melhor parar para comer pois, certamente, ninguém da família contaria com ele para almoçar.

Desde que saíra da estação de serviço que o seu pensamento voava por entre as horas passadas com Lídia. A última mensagem, da qual não obtivera qualquer resposta, tivera o condão de despoletar vagas de recordações com aquela que poderia ter sido a sua namorada. Mas a imbecil da sua ex estragara tudo. E desde esse instante nunca mais Lídia o olhou da mesma maneira… E as perguntas martelavam-lhe o pensamento: deveria ter arranjado uma desculpa? E quando ela soubesse a verdade?

Aproximou-se duma povoação, parou no centro e olhou em redor um busca de um lugar para comer. Não viu nada que lhe desse essa indicação mas descobriu um idoso apoiado a uma bengala puída, sentado numa pedra. Foi a ele que se dirigiu:

- Boa tarde, amigo.

- B’tarde!

- Sabe onde posso encontrar um restaurante para almoçar?

O ancião mediu-o de alto a baixo e após uns segundos levantou a bengala e apontou uma rua estreita, acrescentando:

- Aí em frente tem uma casa à direita que serve comida. Experimente!

- E é boa?

- Eu como lá todos os dias…

Arlindo estranhou que um idoso fosse todos os dias ao restaurante e por isso espantou-se:

- Todos os dias?

- Sim… O restaurante é da minha filha!

Arlindo riu com a sua idiotice e agradeceu.

Após o repasto, que lhe surgiu melhor do que seria de supor, regressou à estrada. Finalmente viu a aldeia no fundo do vale repleto de nacos de vegetação verde. Devagar negociou as curvas perigosas a baixa velocidade. Quando entrou no povoado este parecia estranhamente vazio. Atravessou as ruas estreitas e empedradas até ao lado oposto onde se situava a casa da mãe e aí parou o seu carro.

Olhou à sua volta e percebeu que nada mudara, rigorosamente nada. Foi como se tivesse saído dali no dia anterior. Calculava que o corpo do pai estaria na velha e pequena capela de S. João, que só se abria para a função de capela mortuária. Mas não se sentia preparado para o que possivelmente iria ver. Carpideiras convictas mãe e irmãs, assim que o vissem iriam descarregar torrente de lágrimas. Respirou fundo!

Passou por diversos pessoas a quem cumprimentou, como era hábito e percebendo que ficavam a falar de si nas suas costas. Finalmente a capela. À porta, ninguém.

Ao entrar sentiu logo o cheiro nauseabundo das flores e da cera das velas que davam ao local uma luz mortiça. No meio da pequena sala o caixão contendo o féretro do pai. Finalmente os olhos habituaram-se à quase escuridão e aproximou-se da mãe que descobriu a um canto da sala enterrada num sofá.

Tal como previra, mãe e irmãs quando o viram irromperam numa espécie de coro de lágrimas que ele não gostava, mas assumia ser mais ou menos normal.

- O teu pai morreu sem saber nada de ti… - acusava a mãe.

- O pai, Arlindo… o pai morreu – chorava uma das irmãs enquanto o cumprimentava com dois beijos molhados.

Sentia-se triste pelo pai obviamente mas odiava aquele ambiente tétrico e doentio. À volta da sala mais mulheres pareciam rezar de terço em punho. Outras apenas olhavam para o recém-chegado e comentavam em surdina…

Arlindo nunca fora um homem de fé não obstante os pais o terem ensinado o básico do catolicismo. Sentou-se numa cadeira ao lado da mãe e foi respondendo ao interrogatório familiar que ele sabia natural… O tempo naquele lugar passava devagar. De vez em quando entrava mais uma mulher e repetia-se o ritual. Choros e gritos que Arlindo assumia como sendo prova de qualquer coisa. Ainda não sabia bem do quê…

Ali esteve horas agradecendo os cumprimentos de pêsames a quem o cumprimentava e viu quase toda a aldeia passar por aquele espaço homenageando o seu pai. Já era tarde quando um dos cunhados, um homem rude e de fracas maneiras foi ter com Arlindo:

- Quer ir comer qualquer coisa? Está aí há horas…

Era óbvio que precisava sair dali… Aproveitou então o convite e disse à mãe:

- Vou ser se como qualquer coisa. Quer que lhe traga algo?

- Não filho, não tenho fome - choramingava a mãe.

A noite tomara conta da aldeia e uma brisa fria soprava vindo da serra. O pequeno adro estava agora repleto de homens que conversavam em tom baixo. Mas uma voz sobressaiu de todas as outras. E essa voz perguntava:

- Onde posso encontrar o Arlindo?

Este voltou-se e só soube exclamar:

- Lídia!

 

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19 Mar, 2015

Ao meu pai!

Quantas palavras disseste que não escutei

Quantos conselhos deste que não segui,

Quantas ensinamentos que eu esqueci.

Quantas coisas quiseste que não dei.

 

Ser meu pai não foi fácil, eu sei, eu sei!

Fui deveras duro, rebelde, inconstante,

E o passado que te proporcionei...

Não foi digno da tua vida errante.

 

Hoje sei o que vales para mim

Neste dia que agora também é meu

Tu és a ancora, a enxada, o sem-fim,

A noite fria, o dia quente, o anilado céu

 

 

Também aqui

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A viatura seguia a grande velocidade na auto-estrada. Era ainda noite mas no horizonte podia-se já perceber a penumbra de um novo dia. Arlindo recebera a chamada que não queria: o pai havia falecido nessa mesma noite, vítima de um ataque fulminante.

A pressa não tinha a ver com o pai, a quem já não podia valer, mas sim com a mãe, agora mais só, mesmo que estivessem lá as irmãs mais velhas. Durante quilómetros o causídico recordou-se dos longos e distantes dias passados com o pai por entre ovelhas e cabras, tufos de alecrim e rosmaninho, regatos e minas de água fresca e cristalina.

Lembrou-se das cerejeiras plantadas à volta da eira, do enxerto numa macieira brava ou da vindima e da jeropiga aveludada. O pai nunca estudara mas não era nenhum idiota. E era senhor de verbo fácil e escorreito. Na maioria com grande humor que agora reconhecia ter herdado.

Uma singela lágrima aflorou-lhe aos olhos mas rapidamente a reprimiu. Doí-lhe não ter tido tempo de cumprir a promessa que fizera ao pai de regressar à aldeia mais cedo… “Nunca prometas aquilo que sabes que não podes cumprir”, ouvira ele de um professor na faculdade.

- Como tinha razão o professor – desabafou.

O sol raiava já e começava a incomodá-lo seriamente. Por isso decidiu parar na estação de serviço que se aproximava. Sentado à mesa, beberricava o café de forma maquinal, pois o seu pensamento saltitava para lá das serras. Olhou o relógio de pulso e lembrou-se que Lídia àquela hora estaria quase a embarcar para Nova Iorque. Mais um revés na sua vida. Pegou no telemóvel e escreveu:

Adorava estar contigo hoje. Darmos o beijo que nunca demos. Abraçarmos como nunca o fizemos. E dizer-te só que te amo. Partes para jamais regressares, eu sei, mas serás sempre a tal… mulher. O meu pai também partiu esta noite mas numa outra viagem. Vou a caminho da minha aldeia para me despedir dele. Sê muito feliz. Tu mereces. Com amor. A.

Releu a mensagem, aqui e ali mudou alguns caracteres mal escritos. Achou-a todavia demasiado longa mas não retirou uma palavra. Carregou na tecla de “enviar” e aguardou a resposta. Logo de seguida pode ler “Entregue” no relatório que a operadora disponibilizava. Ergueu-se, pegou na chave preta e no casaco e dirigiu-se ao carro. Segundos depois já estava outra vez na auto-estrada.

No Aeroporto Lídia lia um livro no seu tablet quando sentiu o seu telemóvel a tremer.

- Publicidade – disse para consigo e manteve-se concentrada na leitura.

De vez em quando erguia os olhos para perceber se a porta de embarque já se encontrava aberta. O telemóvel continuava a tremer. Pegou-lhe para o desligar quando percebeu que tinha uma mensagem de Arlindo. Não a leu porque a porta de embarque abrira entretanto. Aproximou-se decidida carregando uma mala pequena de rodas, mas aprumou-se atrás de diversas pessoas que se aglomeravam à sua frente. Foi a altura de ler a mensagem.

 

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Aos nossos leitores, em janeiro, foi deixado um desafio, como podem aqui recordar.

A Lídia, nossa gentil e estimada leitora, o seu contributo enviou, quase de imediato. Por minha culpa, dado não consultar a minha conta de correio eletrónico da yahoo há vários meses, só agora nos é possível partilhar esta pérola com os nossos leitores, ao som do desafio: Slave to love.



 

 

Não me deixes, Bárbara

 

Os seus dedos agitavam-se desenfreadamente. Luís estava tão absorvido que o tempo ganhava uma outra dimensão. Com gestos ora rápidos, ora pausados, fazia questão de sair vitorioso daquele duelo.
Bárbara passava a palma da mão pela cara suada, na sala ao lado. Felizmente, as crianças já estavam deitadas. O cesto da roupa perfumada e hostil esperava-a desde o início da noite para mais uma escalada de trabalho.
O olhar dele ficou crispado de repente. Os seus gestos, aliviados de toda a carga emotiva, tornaram-se subitamente mais vagarosos. Acabara de perder… Era urgente retomar as rédeas do poder.


À medida que deslizava pela roupa demasiado seca, o ferro tornava-a mais macia, enquanto a aquecia. Deixava-se conquistar a custo, apesar do pulso firme de Bárbara. Ela revia mentalmente o seu dia e a lembrança dos comentários jocosos dos seus colegas da fábrica tornara aquele serviço menos penoso. Se eles soubessem…
“Ah, agora é que vão ver do que sou capaz!” – assegurava-se Luís, sem desligar os olhos do ecrã.


Com o seu adversário têxtil finalmente derrotado, arrumou o cesto na despensa.
– Luís, e se nós nos fôssemos deitar?

Silêncio surdo.

– Não te apetece ir comigo até lá abaixo?

À espera de uma resposta que não chegara a ser pronunciada, Bárbara olhou para o relógio. Poderia ir, sozinha, até ao café da vizinha, acalmar a sua tormenta interior… Alguns instantes depois daquele vão monólogo, atirou as leggins para a roupa suja e vestiu as suas calças preferidas. Ajeitou os cabelos pretos. Colocou um pouco de rimel nos olhos cansados. O som da porta a bater interrompeu bruscamente o silêncio.

Numa das mesas, uma colega acenava-lhe. A interpelação “Olha quem chegou!..” sobrepôs-se ruidosamente ao som de uma música do Bryan Ferry.
Apesar da alegria serena que tentava transmitir, o seu pensamento voava noutras direções… Estava farta de ser cativa daquele homem que lhe roubara a possibilidade de uma felicidade partilhada. As promessas que a tinham cativado no início da sua relação haviam evaporado, tal como o cesto da roupa esvaziado, e a sua vida tornara-se um cativeiro…

– Bárbara! BÁRBARA! Por que é que não me respondes?
Regressara à realidade e só então notara a ausência dela. Escravo do maldito jogo! Só nestes momentos, sentia remorsos do seu desapego por aquela mulher cujos olhos negros um dia o tinham seduzido.
“Não me deixes, Bárbara…Nunca me deixes…”


Lídia

 

Aviso: Qualquer semelhança com o poema ENDECHAS A BÁRBARA ESCRAVA, de Luís de Camões, é pura benevolência.

 

16 Mar, 2015

A tal?

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Acordou sobressaltada com um insistente toque na campainha da porta. Olhou as horas no relógio luminoso e viu: 2 e 20.

Estremunhada levantou-se, vestiu o roupão e encaminhou-se a cambalear para a porta. Espreitou pela pequena vigia e viu… Arlindo! Rodou a chave e preparava-se para dar um raspanete ao amigo quando abrisse a porta quando percebeu que o amigo tinha mais para lhe dizer… e que ela não vira. Colado ao peito havia um cartaz com dizeres: Não digas o meu nome. Veste-te e vem ter comigo lá fora! É urgente!

Lídia ainda meio adormecida tentou ainda dizer alguma coisa mas o dedo de Arlindo em riste obrigou-a a calar-se. Fechou a porta, vestiu uma roupa prática e desceu logo que pode à rua. Estava uma noite fria, um vento frio agitava-se por entre as folhas perenes das árvores que cresciam no passeio da grande avenida. Mas Lídia agasalhara-se o suficiente. Já ao relento percebeu a figura do amigo de costas e que se achava encostado a um poste de electricidade. Aproximou-se devagar e perguntou de forma ríspida:

- Tu sabes que horas são?

- Olá boa noite! E sei muito bem que horas são agora. Mas preciso falar contigo com urgência.

- Que tens para me dizer?

- Bom… é melhor começar pelo mais importante: querem-te de volta à empresa!

- Como sabes isso? Mais uma das tuas misteriosas histórias…

- Lídia, tem calma e ouve-me se fazes favor…

- Sou toda ouvidos.

- Mas vamos caminhando, sim?

- Está bem, mas despacha-te que eu quero descansar.

- Há cerca de duas semanas perguntaram-me se mantinha relações de amizade contigo e ao que eu respondi que sim mas que havia tempo que não falávamos. Finalmente pediram que te sondasse para perceber se estavas disponível para regressar. Segundo percebi o indígena que te substituiu só tem feito asneiras e há gente já com vontade de sair…

- … Parece que não fui só eu…

Arlindo ignorou olimpicamente o último comentário.

- E esta tarde quando te liguei a determinada altura o teu telefone desligou-se…

- Ficou sem carga!

- Pois calculei, mas meia hora depois liga-me o senhor Fialho a perguntar se já te tinha convencido a regressar. Percebi instantaneamente que o telemóvel que me haviam oferecido estava a ser monitorizado e desliguei logo a chamada.

- Como? Explica lá isso outra vez… - solicitou Lídia atónita com a nova descoberta.

- Desculpa, mas a culpa não é minha… Eu sei que isto parece um filme daqueles de Hollywood mas é pura da verdade… Eles andam a escutar as minhas conversas.

- E serão só as tuas?

- Acredito que sim porque o aparelho foi-me disponibilizado por eles vai para umas semanas.

Lídia soltou um riso quase maléfico e revelou:

- Pois estão com azar… Estou de partida para os Estados Unidos ainda esta semana. Ando apenas a ultimar umas burocracias.

O chão tremeu debaixo de Arlindo. Sabia que aquela mulher era… a tal! E encontrava-se na eminência de ficar sem ela, mais uma vez. Todavia, aparentando uma calma glaciar perguntou:

- Ena, e posso saber para que cidade vais?

Não era esta a pergunta que Lídia desejava ouvir de Arlindo mas respondeu:

- Para a cidade que nunca dorme… Sabes qual é?

- Sim sei muito bem… Essa cidade é tal e qual como eu… Também nunca durmo!

 

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