Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obriga. Os olhos dele estavam fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.
Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.
Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.
- O que eu não dava homem para ouvir de ti uma (...)
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Detestava que marcassem reuniões quase em cima da hora. Geralmente tinha o seu trabalho todo planeado e uma reunião vinda do meio do nada… aborrecia-a olimpicamente.
Quando olhou o seu relógio de pulso percebeu que estava quase na hora e saiu do gabinete em passo apressado. Mas antes:
- Amélia vou para a reunião com a Administração. Anote os recados se fizer favor.
(...)
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O telefone à sua frente tocou. Ergueu o olhar para ver quem era e leu o nome de Amélia. Premiu o botão de voz alta e respondeu:
- Diga Amélia.
- Doutora… tem aqui… uma visita…
- Uma visita? Quem é?
- A pessoa pede para não dizer quem é… Só quer falar consigo…
- É trabalho?
A porta abriu-se de supetão e Arlindo irrompeu pelo gabinete.
- Não, não é trabalho…
Lídia ergueu-se furiosa da sua cadeira, passou pelo homem e dirigiu-se à secretária:
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A pergunta feita assim de chofre parecia trazer outra intenção. Lídia olhou o projector no tecto como fosse ali encontrar a resposta, fez um trejeito com a face e respondeu:
- Já aprendi que não posso dizer nunca! Neste mundo tudo é possível, desde que queiramos.
- Ui Lídia, isso dava pano para mangas. Ficávamos aqui a falar até às tantas… Será melhor não entrarmos por aí.
(...)
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Espreguiçou-se como não fazia havia muito tempo. Embrulhou-se num roupão que trouxera de Viena e abriu a janela do quarto. O dia estava luminoso mas frio, muito frio.
Saiu do quarto, dirigiu-se à cozinha e ligou a cafeteira eléctrica. Olhou as horas no relógio do microondas e exclamou:
- Ena, já passa do meio-dia…
Veio-lhe então à ideia a mãe… Alcoólica, era por aquela hora (...)
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Foi numa manhã gelada e enevoada de Janeiro que Arlindo nasceu, numa aldeia embutida na encosta da serra fria e pedregosa. Fora o quinto filho e a alegria da sua chegada fora saudada como do nascimento da primeira criança.
- É um rapagão. Perfeitinho! – concluiu a parteira velha e balofa, que fizera vir ao mundo mais de metade da aldeia.
A mãe não sabia se havia de rir ou (...)
I
O temporal da noite não deixava quase ninguém descansar. Ora era o vento que sibilava por entre as frestas das velhas portadas de madeira ou a chuva que jorrava do céu em torrentes diluvianas e batia na telha vã. No quarto tentavam descansar de mais um dia de trabalhos Jacinto e a mulher Ofélia. Na sala dormiam insensíveis à intempérie os três filhos do casal: Josué, Nelson e Armindo.
De quando em vez a casa de pedra era sacudida por um trovão. Ofélia rezava baixinho (...)
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Quando acordou sentiu-se diferente. Havia muito tempo que não dormia assim. Em paz. E tudo por causa da noite e madrugada passada com ele, num local diametralmente oposto ao que seria de supor para a época do ano.
O convite que lhe fora endereçado, à laia de desafio, tivera o condão de a acordar para outra realidade. E em boa hora o aceitou pois jamais nos seus trinta e (...)
Laura acordou. O barulho incomum na casa havia-a despertado. De pijama com ursos estampados, ainda meio ensonada, abriu a porta do quarto. O barulho tinha parado. Voltou então à cama quente e apetecível.
A menina tinha oito anos de inocência adequada à idade mas dona de uma inteligência especial. Aprendera a ler sozinha… Admirava-se muitas vezes do pai, que de livro em riste, conseguia rir e até chorar apenas com a leitura. E quando o via demonstrar alguns sentimentos perguntava-lhe: