A Ceia de Ano Novo
Olhou o relógio em cima da secretária que marcava 23 horas e cinco minutos. À direita um monte de papéis para ler e dar despacho. À esquerda uma chávena grande de café acabado de tirar da máquina.
Embrenhou-se uma vez mais nos papéis e esqueceu-se de tudo. De súbito um estrondo abanou o gabinete. Logo outro e depois muitos mais. Ergueu-se da secretária e abriu os estores. Lá fora a noite apresentava mais luz. Percebeu isso nas cores vermelhas e verdes que se dispersavam no céu.
- Olha um fogo-de-artifício… - exclamou entre dentes, qual desabafo.
E ali ficou pregada naquele espectáculo de pirotecnia. Lembrou-se da sua mocidade e das passagens do ano com o avô longe de Portugal, cada ano numa cidade diferente. A breve evocação do calor humano daqueles dias já longínquos no tempo aqueceu-lhe o coração. Mas logo de seguida reparou na secretária e nas resmas de folhas, olhou as horas no seu relógio de pulso e percebeu:
- Meia-noite… E eu aqui… Só!
Uma lágrima rolou pela face maquilhada deixando um rasto que ela nem se incomodou a reparar. Sentou-se uma vez mais à secretária disposta a trabalhar a noite toda. Nesse mesmo instante alguém bateu à porta:
- Entre – respondeu instantaneamente como estivesse numa hora normal de expediente.
- Dá-me licença sôtora?
Ergueu os olhos e viu um homem na sua frente de farda vestida. Percebeu que era o segurança do prédio.
- Ah é o senhor… Anda a fazer a ronda?
- Sim sôtora. E como reparei que havia aqui luz pensei que não estivesse cá ninguém. Seja como for hoje é dia de ano novo…
- Pois para mim os dias são todos iguais… feitos para trabalhar.
O homem teria mais ou menos a idade dela e parecia querer dizer mais alguma coisa mas aparentava algum receio. Foi ela que o estimulou colocando uma pergunta:
- E você que faria, se não estivesse aqui?
- Quer mesmo saber?
Ela recostou-se na cadeira e lançou:
- Obviamente.
O homem pigarreou um pouco como se estivesse a tentar ganhar coragem e atirou:
- Estou cá porque sou obrigado, como deve entender. Quando entrei há três meses foi logo nessa condição. Mas se aqui não estivesse estaria com amigos…
- Não tem família?
- Tenho mas estão lá para a Beira. Cansei-me da enxada e o cajado e parti para Lisboa faz muito tempo. Há anos que não vou à aldeia.
- Mas porquê?
- Oh, sei lá. Umas vezes porque não tenho dinheiro que chegue, outras porque não posso…
- Quem tem lá?
- Os meus pais, valentes ainda. As minhas irmãs, sobrinhos e afilhados… - e um breve sorriso mostrou uns dentes perfeitos.
- Tem assim tanta família?
Abanou os dedos num gesto conhecido e respondeu:
- Ui somos muitos. Quando nos juntamos é uma barulheira infernal… - sentiu o entusiasmo subir o tom de voz, mas logo o baixou.
Foi-se escusando:
- Desculpe. Acabei por a incomodar. Agora já sei que é a sotora que está aqui… Vou-me embora.
Virou costas e preparava-se para sair do gabinete quando ela lhe perguntou:
- A que horas sai hoje?
- Eu? Às sete… Se tudo correr bem!
- E já jantou?
- Claro, comi antes de entrar no meu turno das onze da noite. Porquê? Ainda não jantou?
- Não! – a resposta parecia dita como tivesse cometido um crime. Depois levantou-se, virou as costas ao segurança e olhando a rua, agora mais serena, perguntou:
- Sabe porque estou aqui a esta hora?
O interlocutor pareceu tossir mas respondeu aquilo que lhe parecia ser a verdadeira razão:
- Porque não tem ninguém com quem jantar…
Ela virou-se para ele e olhando-o nos olhos devolveu:
- Como descobriu?
O primeiro receio havia desaparecido. Agora falava de igual para igual. E foi franco:
- Uma mulher jovem e bonita como a sotora só aqui está para fugir… de si mesma. Desculpe… não devia ter dito isto…
Uma lágrima voltou a escorrer pela face da mulher. O guarda foi acrescentando:
- Posso ter vindo da aldeia mas já vi muita coisa na cidade. E sei que aqui na cidade no meio desta multidão, que todos os dias passa por nós, há mais gente solitária que lá no casario beirão.
Uma torrente de lágrimas obrigou a mulher a procurar um lenço. Assoou-se e finalmente confessou.
- Tudo o que disse é verdade. Estou só vai para muitos anos… Primeiro foram os meus pais que se separaram e passei a andar de um lado para o outro. Os meus irmãos idem e faz muito tempo que não sei nada deles. Estudei muito para aqui chegar. Por isso nestas alturas… vingo-me no trabalho.
O segurança teve pena da mulher que chorava em silêncio à sua frente. O gabinete estava quente, acolhedor, mas de um gelo humano que atormentou o rapaz. Ao invés, na rua onde tantas vezes via os sem-abrigo fugir do frio e da intempérie, havia afinal mais calor humano que naquela sala bem decorada. Corajosamente lançou um convite:
- Tenho ali uma ceia que trouxe de casa. Trago sempre a mais porque costumo partilhá-la com um velhote que dorme nas traseiras do nosso prédio. Mas hoje posso partilhá-la consigo… acho que necessita mais dela do que ele.