Chamada anónima
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A pergunta feita assim de chofre parecia trazer outra intenção. Lídia olhou o projector no tecto como fosse ali encontrar a resposta, fez um trejeito com a face e respondeu:
- Já aprendi que não posso dizer nunca! Neste mundo tudo é possível, desde que queiramos.
- Ui Lídia, isso dava pano para mangas. Ficávamos aqui a falar até às tantas… Será melhor não entrarmos por aí.
Ela concordou.
- Também acho! Vai mais um copo? – perguntou, pegando na garrafa de vinho, preparando-se para despejar no copo de Arlindo.
Ele, sagaz e rápido, colocou a mão a tapar o bocal enquanto acrescentou:
- Sabes que dia é hoje? Dia de Ano Novo…
- E…?
- Polícia, teste do balão… Para mim, por hoje, chega de bom vinho…
Ela acatou.
- Que fazes tu amanhã?
- Amanhã não, hoje!…
- Hoje? Mas tu ainda vais trabalhar hoje?
- Claro… Entro todas as noites às onze horas. Só assim posso estudar e trabalhar!
- Eu sei, já me tinhas dito. Mas sempre pensei…
Deixou a frase a meio porque um toque de telemóvel soou algures. Arlindo levantou-se dizendo:
- É o meu.
Encontrado o aparelho, olhou o visor e desligou a chamada.
- Então, não atendes?
- É de um número anónimo.
De seguida, dirigiu-se à cozinha, enquanto Lídia se recostava no sofá. Sentia-se amorfa, não sabia se do vinho que bebera em demasia ou somente da boa companhia. Arlindo, não obstante a sua origem humilde, era um cavalheiro com uma visão moderna da vida. Muito mais que a maioria dos homens que Lídia conhecera.
Ela ouviu os pratos e talheres na cozinha e percebeu que era tempo de se levantar para ajudar o amigo.
- Achas que somos namorados? – perguntou Lídia encostada ao balcão de granito negro da cozinha.
Arlindo continuou impávido e sereno, a enxaguar a loiça, antes de a colocar na máquina. Parecia não ter ouvido a pergunta. Lídia insistiu:
- Ouviste o que eu te perguntei?
- Ouvi sim, mas acho que ainda é muito cedo para se falar disso. Pretendentes não te faltarão e eu jamais passarei dum mero segurança do teu escritório.
A amiga empertigou-se, poisou o copo meio cheio que trouxera da sala e numa atitude decidida aproximou-se dele. Este percebendo ao que ela vinha recuou dois passos e avisou:
- Lídia agora não, por favor!
Novamente, o telemóvel tocou. Desta vez, no bolso. Arlindo olhou o visor e acabou por atender. A rapariga assistiu então a um monólogo deveras estranho:
- Estou, quem fala?
…
- Tu? Mas como soubeste deste número?
…
- Já calculava. E queres alguma coisa? – questão feita num tom quase sarcástico.
…
- Desculpa mas não tenho tempo para as tuas idiotices. Passa bem!
Abruptamente, Arlindo desligou a chamada e o aparelho, de forma a não ser incomodado. Mas a sua fisionomia tinha mudado. Havia no seu olhar uma espécie de raiva. As faces haviam-se ruborizado de forma estranha. Lídia percebeu que algo estava mal no amigo. Devagar, aproximou-se uma vez mais do homem e num gesto de ternura esfregou o braço de Arlindo. Num tom meigo observou:
- Já percebi que não gostaste do telefonema. Era alguém importante?
O amigo petrificado respondeu num ápice, quase com se fosse um robot.
- Ninguém importante! Era só a minha mulher.