Vi o teu crescer lento,
tão lento que nem parecias vivo.
Vi os medos por ti elevarem-se,
a dramas e tragédias sem razão.
Vi o ventre de tua mãe ficar redondo,
qual fruta verde e vermelha.
Vi a alegria dos teus movimentos,
como se fosses um irrequieto.
Vi a azáfama em teu redor
como se fosses o único no mundo.
Vi a tua forma franzina mas serena,
oferecendo finalmente calma e alegria.
Vicente! Isto tudo eu vi
e senti!
Também aqui (...)
Ergeu o olhar para o lado oposto da mesa mas a cadeira, tantos anos ocupada, encontrava-se agora vazia. Cinquenta e cinco anos em conjunto! Mais de meio século. E os últimos anos haviam sido de suplício, luta permanente contra uma doença que teimava em evoluir drasticamente.
Lembrou-se da promessa entre ambos, muitos anos antes de qualquer enfermidade...
- Nunca me leves para um lar, quero morrer na minha cama - pedira Amélia um dia.
Ernesto prometera que assim faria. E fez...
(...)
Recordo-me dos tempos idos,
Dos tempos sem tempo.
Lembro-me dos dias tristes,
E das amarguras vãs.
Recordo-me de alegrias fugazes,
E sonhos longamente perdidos.
Lembro-me das noites brancas,
E de amores sentidos e amados.
Recordo-me das faces claras,
Dos sorrisos e das carícias.
Lembro-me das figuras simples,
Mas serenas e amigas.
Recordo-me de não ser,
O que sempre desejei.
Lembro-me de querer
O que nunca pude.
Recordo-me que o amor,
Foi então a (...)
Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obriga. Os olhos dele estavam fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.
Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.
Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.
- O que eu não dava homem para ouvir de ti uma (...)
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O telefone à sua frente tocou. Ergueu o olhar para ver quem era e leu o nome de Amélia. Premiu o botão de voz alta e respondeu:
- Diga Amélia.
- Doutora… tem aqui… uma visita…
- Uma visita? Quem é?
- A pessoa pede para não dizer quem é… Só quer falar consigo…
- É trabalho?
A porta abriu-se de supetão e Arlindo irrompeu pelo gabinete.
- Não, não é trabalho…
Lídia ergueu-se furiosa da sua cadeira, passou pelo homem e dirigiu-se à secretária:
Carlos e Filipa, dois jovens adultos que tiveram necessidade de emigrar, encontraram a sua oportunidade em Barcelona, há cerca de três meses. Festejariam o Natal longe da família, pela primeira vez. A poucos dias da data, decidiram visitar o Parc Güell; passear era a sua tentativa de atenuar as saudades que já começavam a sentir.
O parque ora brilhava à luz de alguns raios de sol, ora se tornava melancólico sob as nuvens e o rapaz teve que aumentar a luminosidade do ecrã do seu smart (...)